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segunda-feira, 11 de maio de 2009

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Linda manhã de domingo

O menino saíra com seu pai e seu tio, apenas pela companhia, que foram conversar sobre assuntos seus de adulto no fundo do terreno da sua casa. O terreno era separado por um pasto enorme quase no meio da cidade por poucos arames mal postos em palanques já comidos pelo tempo. Ele não prestava atenção na conversa. Olhava o céu sem nuvens muito azul, tão limpo que o azul se tornara profundo. Observava também o pasto meio ressequido pela falta de chuva daquele verão tão quente. À sua esquerda, a não muitas quadras de distancia, quase no topo da encosta que começava na estrada que separava seu bairro do centro da cidade, avistava o cinema. Podia ouvir as musicas de domingo que o cinema tocava para toda cidade ouvir nas horas que precediam a matinê. A cidade era muito pequena e parada.
Não era ruim de se viver naquela cidade se fosse criança e possuísse alguns trocados no domingo. Depois do almoço, pelo meio da tarde, toda criança que os possuísse ia à matinê. O almoço de domingo era por si só um grande evento, vinham avós, tios e primos trazendo pratos especiais de cada dona de casa e regavam-se de cerveja. Muita conversa, confraternização e eventualmente discórdia permeavam este almoço. Após uma soneca lá se iam para o cinema as crianças carregadas de bugigangas. De bugigangas sim, pois o cinema não tinha necessariamente o filme como maior atração. Naquela cidade em que o dinheiro era tão escasso e por isso as pequenas inutilidades prioritárias para os pequenos eram relegadas ao último lugar na escala de prioridades dos adultos, o cinema era fundamental. Lá se praticava o comercio de troca de figurinhas e gibis. Os álbuns de figurinhas eram mania entre a molecada. Os temas dos álbuns eram tão variados quanto eram os sonhos da meninada. Havia álbuns sobre os times do campeonato nacional de futebol, suas escalações e craques da época. Outros versavam sobre cantores famosos, carros possantes e filmes de grande impacto. Os álbuns de filmes quando preenchidos reproduziam em quadrinhos a história completa e, na época, os mais procurados foram sobre os filmes Bem Hur e El Cid. As figurinhas eram vendidas em pequenos envelopes lacrados contendo três figurinhas aleatórias que invariavelmente vinham repetidas ficando os meninos com muito mais figurinhas repetidas do que as contidas no álbum. Era necessário comprar muitos envelopes para preencher um álbum de forma que ninguém conseguia preenchê-los. Deste fato surgiu o comercio de trocas. Todos levavam suas figurinhas ao cinema e saiam à procura de quem possuía as que faltavam para trocar. A mesma coisa acontecia com os gibis. Ninguém tinha dinheiro para comprar todo mês todas as revistas que desejava, então se trocavam os gibis já muito lidos por outros no cinema. Que fascinação causavam o Tarzan, o Zorro, o Mandrake, Batman, Super-Homen e os de guerra. A troca por um, dois ou três dependia da raridade das revistas e figurinhas, do estado de conservação e do desejo de possuí-las. A espera pela matinê já tornava o domingo especial e a ansiedade acompanhava as crianças durante o dia todo.
Aquela manhã de domingo, como tantas outras, se apresentava magnífica e enquanto andavam, ouvindo a conversa baixa dos adultos, ouvia-se também e somente, tizius cantando e o som dos passos sobre o pasto ressecado. De repente não se sabe se pela amplidão do mundo só então percebida ou por algo ouvido da conversa sem notar algo horrível aconteceu. Ele se sentiu só, mas de uma solidão tamanha que sentiu vontade de chorar e não chorou. Não haveria remissão no choro, tampouco remédio para aquele mal paralisante. Pela primeira vez na vida sentiu que era ele, só ele, apartado de todos e do mundo. Ele não era um apêndice de seus pais conectado à família indissoluvelmente, ele não era seus pais. Ele ficou só a partir de então mesmo quando junto de muita gente, mesmo fazendo muito barulho em conjunto com amigos. O barulho, a bagunça, a mistura caótica de personalidades jovens nunca mais o fariam esquecer que era ele, só ele. Que inseto horrendo implantou tão pesadas e cinzentas larvas de opressão num coração tão jovem e ficou voejando à espera, zumbindo tão monotonamente e projetando tão escura sombra? Que faz alguém que teve tal sentimento e percepção tão jovem pelo resto da vida? Tem alguma visão redentora posteriormente? Parte à busca de sexo desenfreado? Procura o poder como se fosse um jogo excitante? Torna-se deprimido e apático? Não soube, não sei e talves nunca saiba. Mas na lembrança aquela manhã de domingo era magnífica.


José Renato J. Delben

2007