Benvindo

Este deverá ser um espaço onde amigos compartilhem suas criações e as discutam. Se desejar entre em contato para discutirmos o desenvolvimento do blog e participações. delbenbr@hotmail.com

segunda-feira, 20 de abril de 2009

O Labirinto


Helga era uma menina loirinha de cabelos compridos sempre em duas tranças às vezes enroladas no topo da cabeça. Vivia em uma fazenda afastada bem ao norte, região com muitas florestas e montanhas e muito frias. O povo daqueles ermos tinha muitas histórias que se contavam às crianças para evitar que se aventurassem dentro da floresta ou se afastassem muito de suas casas e acabassem se perdendo ou sendo vítimas de animais selvagens. Mas Helga era uma menina muito curiosa em sua grande afetuosidade por gente e bichos. Por estas coisas era muito corajosa e vivia se aventurando nos limites entre as regiões conhecidas e as mais selvagens, sempre à busca de entender os seres vivos e interagir com eles.
Corria por aquelas terras a lenda sobre um monstro que habitava dentro da floresta densa ao norte. Surgira porque sempre que o vento norte soprava trazia sons de urros ferozes. Tão ferozes eram, desesperadamente ferozes, que quando começavam os trabalhadores no campo abreviavam suas jornadas em busca do abrigo de seus lares e suas esposas e filhos os aguardavam ansiosamente trancados. O dia seguinte sempre era de poucas conversas com todos mostrando em suas posturas e fisionomias um alheamento pensativo como se ainda estivessem ouvindo dentro de si aqueles sons, menos Helga.
Helga não tinha lugares tristes do passado onde aqueles sons pudessem fazer eco dentro dela e achava simplesmente que era um animal selvagem agindo de forma natural. Tinha medo, mas o natural frente a uma força superior à sua, o mesmo que teria defronte a qualquer outro animal selvagem. Era sempre a última a chegar em casa nestes dias e ficou muitas vezes de castigo por isto. Mas suas qualidades e falta de medo sempre a faziam se aventurar um pouquinho mais longe.
Um dia, quase às vésperas de completar doze anos, estava passeando pela orla da floresta num dia cheio somente de sons alegres de pássaros e insetos. Foi então que no canto de sua visão avistou um animalzinho branco que não conseguiu identificar porque correu rapidamente para dentro do mato. Ela o seguiu para ver melhor o que era e continuo seguindo durante certo tempo pensando que toca do bichinho estava próxima e não teria problemas em seguir um pouco mais. Mas não conseguiu alcançar o animal e logo viu que não podia continuar e resolveu voltar. Tomou o caminho de volta, segura que logo estaria fora, mas estava demorando demais para chegar à borda da floresta. Não se preocupou pensando ter entrado só um pouquinho mais que devia e que a qualquer momento veria a luz do campo aberto. Este momento demorou a chegar e ela estava começando a se preocupar quando os urros da fera da floresta começaram. Um arrepio gelado partiu de sua nuca, se espalhou por todo o corpo e ficou residindo na boca do estômago. Mas, atrevida, se controlou e continuou na sua busca de uma saída, afinal os urros pareciam estar vindo de muito longe. Depois de certo tempo viu uma trilha e se encheu de esperanças, pois onde há um caminho deve haver uma saída. Mas pouco tempo depois o caminho se bifurcou e foi obrigada a escolher um deles e seguir em frente. Para seu desespero isto aconteceu diversas vezes até que teve a certeza que se encontrava perdida. Os urros da fera se mantinham sem parar em diversos tons e alturas ainda ao longe e um sentimento de desespero e fatalidade foi tomando conta de Helga. Sentou-se desconsolada e chorou alto e nisto os urros pareceram se tornar mais angustiados. Ela parou então assustada achando que a fera podia estar ouvindo o seu choro. Sabia que morreria de fome se parasse a espera de ajuda, ninguém entraria ali para procurá-la. Continuou andando então como único recurso de salvação.
Andou por horas e os sons de fúria e desespero de tanto martelar tomavam conta de seus pensamentos substituindo a razão por irritação e pavor. Já não conseguia escolher os caminhos claramente e tomava aqueles nos quais os urros pareciam menos assustadores. Andou, andou até anoitecer quando exausta escolheu um oco em uma grande árvore onde se encolheu toda e acabou adormecendo quando o cansaço venceu o pavor. Foi um sono cheio de pesadelos nos quais se angustiava para entender o que diziam os urros. Neles tinha certeza que tinha necessidade de entendê-los.
Acordou cansada e tomando consciência da sua situação começou o dia chorando novamente no que a fera fez-lhe coro urrando com aparência de desespero. Começou a andar novamente, mas agora a floresta parecia estar cheia de caminhos que se encontravam e se desencontravam formando um labirinto. Ela tinha então que decidir a toda hora que caminho tomar. Mas, engraçado, parecia que o som da fera era diferente em cada caminho escolhido. Em uns parecia mais raivosos e em outros mais sofridos, raivosos ou desesperados. Mas um ou outro eram sempre terrivelmente assustadores e Helga tinha que decidir sempre se enfrentava a ira ou o desespero. Escolhia então na hora que chegava à bifurcação segundo o que lhe parecia menos desagradável. E assim foi até cerca de meio-dia quando a floresta passou a ficar mais densa e escura e os urros pareciam estar mais próximos. Isto tornava o seu medo maior e ela passou a apressar o passo tentando fugir, mas como num sonho parecia que ia ao encontro daquilo de que queria fugir. Quanto mais próximo pareciam os urros, mais distintos ficavam e então às vezes pareciam apenas um choro desesperado e em outras também de pura revolta. Helga começou a achar que talvez a escolha dos caminhos nos quais os sons pareciam menos desagradáveis poderia estar levando-a para perto do monstro, mas ainda assim não conseguia fazer uma escolha diferente e estava fadada a encontrá-lo, desesperou-se. A tarde avançava já para o seu fim e os urros começaram a parecer apenas vozes ferozes de dor, revolta, medo, expressas em gritos e palavras horríveis e Helga achou que no fim acabaria se confrontando com uma criatura desumanizada, uma humana fera selvagem e possivelmente assassina. Seguia agora como um robô aceitando fatalisticamente a sua sorte e a sua morte. Quando o dia já estava terminando os sons começaram a mudar rapidamente se tornando apenas um choro desesperado misturado a pedidos de ajuda, misturados com palavras de revolta. E ao por do sol a floresta se abriu em uma pequena clareira com uma grande árvore no centro sob a qual se encontrava um menino mais ou menos da sua idade chorando solitariamente em imensa tristeza. Todo o medo de Helga se esvaneceu em pena, tristeza e comiseração. Aproximou-se lentamente do menino e foi vista. O menino continuou chorando enquanto ela se aproximava, mas agora em tristeza calma e com um sorriso nos lábios. Quando ela deu a mão ele disse – “que bom que me encontrou”. Ao que ela respondeu – “você me obrigou”. Depois disto conversaram coisas de criança até adormecerem. Ao amanhecer buscaram e encontraram uma saída da floresta não sem dificuldades, mas não havia mais choro e ranger de dentes. Havia tempo agora até para observar os pequenos animais da floresta.
Décadas depois sentados em suas cadeiras de balanço na varanda voltada para o norte e para a floresta ainda pareciam ouvir muito ao longe um urro quando o vento soprava daquela direção. O que tinha naqueles labirintos das florestas geladas do norte que aprisionavam o choro das crianças misturando-o nas trilhas e transformando em urros e imprecações? E porque após décadas pareciam ouvi-los ainda?


José Renato Delben

20/04/2009

Nenhum comentário:

Postar um comentário