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quinta-feira, 23 de julho de 2009

Zequinha

Será que todos lembram da primeira grande decepção ou desilusão. Não sei, mas todos mantêm vivida na memória uma grande desilusão que pensam ser a primeira. Zequinha tinha a sua.
Zequinha fora sempre um menino muito sonhador, sempre às voltas com seus livros de contos de fadas e depois de aventuras juvenis. Não era muito falante ou comunicativo vivendo em um mundo muito particular. A não ser as turras com irmãos e pais pouco falava. Se falava era apenas o trivial para pedir ou reclamar de coisas. Se precisasse conversar, não conversava. Lembra-se até hoje do sentimento predominante durante um período determinado de sua infância, solidão. Por outro lado, sempre acabava brigando com todo e qualquer um que invadisse o seu espaço particular.
Certo dia, num domingo, foi com seus pais para o sítio de um seu tio-avô que ficava na periferia da cidadezinha na qual havia nascido. Isto se deu quando ele tinha seus dez anos de idade, tanto quanto podia lembrar. Nestas ocasiões seus avós e vários tios e tias-avós bem como tios, tias e primos se reuniam em grandes almoços barulhentos em torno de uma grande mesa composta de tábuas sobre cavaletes dentro de um galpão. Como o número de irmão e irmãs dos avós era muito grande era óbvio que muitas avós compareciam ao almoço e ajudavam na preparação da comida. A mesa posta apresentava uma fantástica quantidade e variedade de comida da vovó do sítio. Enquanto as mulheres trabalhavam na cozinha os homens matavam e depenavam galinhas, angolas e patos; matavam porcos, pelavam e descarnavam preparando lingüiças, chouriços, etc. E, enquanto faziam isto, bebiam suas cervejas e suas pingas de tal forma que bem antes do almoço começar já todos estavam falando alto coisas pouco sérias e rindo muito.
As crianças tinham que não atrapalhar e, portanto, não tinham muito que fazer. Zequinha não podia se lembrar de muitas ocasiões em que havia outras crianças para brincar. Não possuía nenhum primo ou prima de sua idade no ramo da família destes seus avós. Ele invariavelmente sentia-se muito solitário. Ficava zanzando por perto da casa porque também não tinha permissão para se afastar muito já que por mais prosaico que seja um sítio sempre há coisas perigosas para uma criança pequena. Ele ficava observando os animais, as coisas e locais do sítio sempre fascinado por tudo.
O sítio ficava em uma encosta suave e parte do topo de uma pequena colina. A casa, o galpão, a pocilga, as construções enfim, ficavam quase no topo da colina quando o terreno começava a ficar plano. A pocilga, o local de ordenha das vacas, a pequena coberta onde se matavam, escaldavam e pelavam porcos ficavam na parte de trás da casa na direção de colina abaixo. Logo em seguida vinha o pasto bastante extenso para ambos os lados e que acabava no final da encosta em um pequeno rio margeado por uma mata. Mas o que mais chamou a atenção de Zequinha naquele dia foi o campo de cultivo que se situava à esquerda da casa distante uns duzentos metros e logo após uma pequena plantação de eucaliptos. Ele passou parte da manhã a olhar aquele campo admirando a sua beleza.
No campo existia uma plantação de alfafa de um verde azulado tão homogêneo e fechado que mais parecia um tapete imenso de rara beleza. Quando batia o vento ligeira ondulação percorria todo o campo formando figuras variáveis e muito bonitas. Na inocência dos seus dez anos Zequinha passou a imaginar-se correndo e se jogando sobre o solo coberto com tão magnífica cobertura. Quão maravilhoso não seria sentir-se sobre aquela maciez verde. Deveria ser como andar sobre nuvens sem sentir a aspereza do solo, a secura da terra. Seria o paraíso viver naquela perfeição. Teve fé pela primeira vez na vida na existência do paraíso e, ainda por cima, aqui na Terra.
Tão desejoso ficou de vivenciar o seu sonho que esperou todos dormirem depois do almoço e, desobedecendo a seus pais, partiu para explorar aquela parte do sítio. A própria tomada de decisão e realização da caminhada até o campo de alfafa foi uma aventura cheia de mistério. Com o sol a pino e sob um calor intenso caminhou em direção ao manto verde com o coração aos pulos e felicidade antecipada. À medida que se aproximava do local foi percebendo que o verde não era tão homogêneo como imaginava e o princípio de um desconforto se instalou em seu peito. Quando adentrou a plantação viu o solo sob as plantas tão áspero e quente quanto fora dela e os seus pés descalços doíam quando pisava nas plantas que possuíam caules finos e duros. Não foi muito adiante. O vazio e perplexidades que sentia o paralisaram e um pensamento precoce passou pela sua mente: “a perfeição só existe de longe e nunca pode ser alcançada”.
Desde então começou a procurar o campo de alfafa perfeito aonde fosse e com quem estivesse. A partir daí colecionou uma seqüência de desilusões, coisa dispensável se tivesse aceitado a conclusão inicial pelo coração e não somente com o intelecto. Procurou primeiro na sabedoria que perseguiu tenazmente até entender que era por demais falível para adquiri-la. Procurou depois nas religiões até perceber que era por demais crítico para ter fé incondicional. Procurou nas mulheres durante muito mais tempo e mais intensamente que nas demais possibilidades até perceber que a união de dois falíveis não poderia produzir interações perfeitas.
Na juventude se juntou a tribos em cujo convívio todos os enigmas, mistérios, dúvidas, medos e desilusões eram mascarados por conversas ruidosas, músicas cacofônicas ou melódicas em alto volume e festas regadas a cerveja. Os sonhos cor de rosa de romance e aventura com muito sexo, viagens e fartura ainda existiam. Para sempre aqueles jovens diriam que aquela tinha sido a melhor época de suas vidas, mas pensariam secretamente que também a pior de todas. Os sonhos e amores nasciam como espinhas em rosto de adolescentes, no entanto ao contrário destas gerando prazer quando nasciam e frustração quando morriam.
À medida que envelhecia passou a conhecer melhor os amigos e os amores e todos os seus defeitos e insuficiências passaram a ser percebidos; não eram diferentes dos seus. Percebeu que, assim como ele, todos buscavam no outro a fonte de sua felicidade e se esta não se cumpria a culpa era sempre do outro. Os conflitos, as cobranças, se multiplicavam na busca de transformar o mundo num lugar de perfeição pela ação do próximo. Dores, feridas, cicatrizas e desilusões se multiplicaram.
A consciência de sua mortalidade se tornava cada vez mais forte. E a inutilidade daquele tipo de vida se tornava cada vez mais evidente e se viu num beco sem saída. Para seu desespero ninguém tinha resposta para suas angústias, pois estavam no mesmo barco da ignorância. Os jovens de outras tribos, outros costumes e moral estavam cometendo os mesmos erros mascarados sob outras músicas, roupas, brincos e cortes de cabelo. Os mais velhos, quase todos, evidentemente não tinha descoberto o grande segredo.
Um dia alguém lhe falou de uma nova ciência: a ciência da paz, a paciência, que conferia serenidade. Ele procurou então o cientista que inventara esta ciência e um professor que a pudesse ensinar. Mas todos a conheciam mal e de segunda mão, e nenhum a podia praticar perfeitamente. Mas se não havia sábios perfeitamente pacientes como poderia o estado das coisas nas relações coletivas ou particulares ser culpa de alguém e dele inclusive? Descobriu que o princípio básico desta ciência era perdoar. Perdoar diariamente tudo e a todos, o outro e a si mesmo. Só que ele não sabia perdoar, pelo menos não completamente, e não sabia como aprender a fazê-lo.
A Zequinha restou apenas procurar entender e praticar constantemente e confiar no tempo e no vento das mudanças. Depois de um certo tempo começou a enxergar as pessoas como pés de alfafa formando no coletivo uma grande plantação ondulando sob efeito de ventos às vezes fracos às vezes fortes e que se aprendesse a olhar de maneira mais distante, de um novo ponto de vista, poderia perceber a beleza do padrão. Zequinha ainda não é em paz, mas desde então volta freqüentemente a ser aquele menino sentado na soleira da porta olhando o mundo com suas plantações tão bonitas.
José Renato, 199?

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