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Este deverá ser um espaço onde amigos compartilhem suas criações e as discutam. Se desejar entre em contato para discutirmos o desenvolvimento do blog e participações. delbenbr@hotmail.com

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Coração tapera

Uma tapera não tem trinco, não tem tramela nem cadeado. Tem frestas, buracos pelas quais o sol e a lua desenham arabescos no chão e paredes. É uma morada maravilhosa para o que é livre e incontido, como o vento que hora repousa hora corre célere. Que melhor lugar para o precioso morar que num coração tapera. Tão pobre que não possui brilhos além daqueles do sol e da lua. Que não tem adornos. Que deixa vazar e extravazar para dentro e para fora seus tesouros

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Onde?

Longe
tão longe de nós.
talvez entre as nuvens da INCERTEZA.
Lia Noronha




Ele estaria nas entrelinhas? No espaço em branco entre os quadrinhos das revistas? No vazio entre uma emoção e outra? No silêncio entre duas notas? Na chama de uma vela que acabou? No final de um suspiro? Dançando com um saci no meio do redemoinho? Onde???

José Renato
09/11/2009

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Geométrico

Ele estava sonhando, só poderia estar sonhando. Quando fora dormir estava tão deprimido em decorrência dos problemas cotidianos que tivera dificuldade para pegar no sono. Como podiam as pessoas arranjar tantos problemas e se digladiarem tanto por tão pouca coisa? Por mais que tentasse compreender não conseguia. Dormira e agora estava em uma paisagem estranha e impossível. Estava em uma praia de areias claras, mas não brancas, que tomava toda a extensão de uma baía bastante larga. A areia se estendia terra adentro por grande extensão num aclive muito suave e se transformava gradativamente num campo gramado que se perdia de vista até começar uma cadeia de serras azuladas pela distância. As cores e formas eram muito realçadas: o mar e o céu azuis, a areia creme, a relva verde e as montanhas azuis acinzentadas eram mais azuis, verdes ou claras que qualquer outra paisagem que havia visto.
Uma pequeníssima comunidade de casas muito brancas, quase todas aproximadamente cúbicas, com arestas bem definidas, se situava sobre o imenso relvado. Aquelas pequenas casas, todas térreas, pareciam não construídas, mas sim, recortadas de um bloco maciço formando um conjunto de aspecto uniforme. Mesmo as portas e janelas possuíam cantos, sem batentes, bem definidos. Não havia ninguém pelas ruas e eram muito estranhas aquela quietude e imobilidade universal sob um sol muito claro em um céu sem nuvens. Não havia nem vento nem pássaros. Senti-me em grande paz, numa alegria luminosa, conferida por uma luz natural que não feria os olhos, um ar fino e revigorante e uma temperatura tão adequada que não percebia a própria pele.
Em grande perplexidade e curiosidade percorri um caminho de cascalho branco até uma casa central localizada no que parecia ser uma praça. Esta casa era ligeiramente maior que as demais e poderia tanto ser um templo quanto um centro administrativo. Fui entrando por uma abertura sem porta não maior que as das portas comuns. A casa possuía apenas um ambiente e, assim como no exterior, todas as superfícies apresentavam a mesma cor branca e uma textura totalmente lisa, sem adornos, frisos, rodapés, nada. Assim que entrei presenciei a cena mais estranha que possa me lembrar. No centro da casa havia muitas pessoas. O número exato delas não era possível determinar, devido à própria condição em que se encontravam. Eram pessoas de todas as idades, raças e aparências: todos os tipos humanos estavam ali representados. Era um grupo de pessoas amontoado compactamente e não se via espaço entre elas. Mas não estavam de pé e nem mesmo paradas. Estavam sim amontoadas formando o que parecia ser um novelo e se moviam constantemente de forma que o embolado que formavam nunca tinha a mesma aparência. Aquilo me pareceu tão estranho e confuso que até a clareza geométrica do ambiente parecia ter se perdido pela minha falta de atenção a ela. Procurei então buscar a causa deste comportamento tão insólito e me aproximei um pouco. As pessoas estavam interagindo de todas as formas, mas, principalmente estavam se digladiando, disputando espaço para permanecerem mais à superfície do bolo. Inúmeras delas arranhavam, puxavam, empurravam e mordiam as outras e então percebi que umas acabavam tirando pedaços das outras num processo sem tréguas e sem pausa. De repente uma delas arrancou um olho de outra e com um fio de carne que pendia tentava atar as mãos da outra. Senti enorme horror pela situação, mas, mesmo assim não pude tirar os olhos das pobres criaturas ali presentes. Percebi chocado que não eram pessoas especiais ou incomuns, eram pessoas normais ali representadas. Não eram nem boas nem más segundo o senso comum e estavam ali vivendo simbolicamente suas vidas cotidianas.
Depois de ter visto tanta beleza e paz no caminho até aquele ambiente, o que proporcionara alívio e serenidade para minha alma tão torturada, não era justo presenciar aquela cena. A que me servia ter presenciado tanto horror e tristeza? Por que, meu Deus, tanto caos e despropósito na vida humana? A que atendiam nossos instintos reptilianos, nossas emoções de mamíferos e nossa pretensa razão humana se estavam a serviço desta eterna guerra despropositada? Quis sair dali, fugir, e não pude. Um torpor em minhas pernas e uma fixação forçada da minha atenção me obrigaram a continuar presenciando aquela cena dantesca. Para meu horror as pessoas começaram a ficar descarnadas e pedaços eram arrancados, lançados para fora do bolo e desapareciam. Por fim até os ossos foram lançados fora. O processo foi chegando ao fim e as pessoas foram desaparecendo, mudando de aparência na realidade, e ficaram agrupadas suspensas no ar inúmeras formas geometrias planas, ligeiramente luminosas e transparentes. Havia triângulos, círculos, elipses, quadrados, etc. de todas as cores e tamanhos em eterno movimento se tocando e colidindo. Agora não mais tiravam pedaços umas das outras, mas sim, sons puros e cristalinos de diversos timbres quando se entrechocavam suavemente. Uma suave melodia pairava no ar devido aos choques entre elas. Não uma melodia usual, mas aleatória e ao mesmo tempo regular, indefinível na realidade.
Até hoje não entendo o sonho que tive, mas me vem uma imagem Ele estava sonhando, só poderia estar sonhando. Quando fora dormir estava tão deprimido em decorrência dos problemas cotidianos que tivera dificuldade para pegar no sono. Como podiam as pessoas arranjar tantos problemas e se digladiarem tanto por tão pouca coisa? Por mais que tentasse compreender não conseguia. Dormira e agora estava em uma paisagem estranha e impossível. Estava em uma praia de areias claras, mas não brancas, que tomava toda a extensão de uma baía bastante larga. A areia se estendia terra adentro por grande extensão num aclive muito suave e se transformava gradativamente num campo gramado que se perdia de vista até começar uma cadeia de serras azuladas pela distância. As cores e formas eram muito realçadas: o mar e o céu azuis, a areia creme, a relva verde e as montanhas azuis acinzentadas eram mais azuis, verdes ou claras que qualquer outra paisagem que havia visto.
Uma pequeníssima comunidade de casas muito brancas, quase todas aproximadamente cúbicas, com arestas bem definidas, se situava sobre o imenso relvado. Aquelas pequenas casas, todas térreas, pareciam não construídas, mas sim, recortadas de um bloco maciço formando um conjunto de aspecto uniforme. Mesmo as portas e janelas possuíam cantos, sem batentes, bem definidos. Não havia ninguém pelas ruas e eram muito estranhas aquela quietude e imobilidade universal sob um sol muito claro em um céu sem nuvens. Não havia nem vento nem pássaros. Senti-me em grande paz, numa alegria luminosa, conferida por uma luz natural que não feria os olhos, um ar fino e revigorante e uma temperatura tão adequada que não percebia a própria pele.
Em grande perplexidade e curiosidade percorri um caminho de cascalho branco até uma casa central localizada no que parecia ser uma praça. Esta casa era ligeiramente maior que as demais e poderia tanto ser um templo quanto um centro administrativo. Fui entrando por uma abertura sem porta não maior que as das portas comuns. A casa possuía apenas um ambiente e, assim como no exterior, todas as superfícies apresentavam a mesma cor branca e uma textura totalmente lisa, sem adornos, frisos, rodapés, nada. Assim que entrei presenciei a cena mais estranha que possa me lembrar. No centro da casa havia muitas pessoas. O número exato delas não era possível determinar, devido à própria condição em que se encontravam. Eram pessoas de todas as idades, raças e aparências: todos os tipos humanos estavam ali representados. Era um grupo de pessoas amontoado compactamente e não se via espaço entre elas. Mas não estavam de pé e nem mesmo paradas. Estavam sim amontoadas formando o que parecia ser um novelo e se moviam constantemente de forma que o embolado que formavam nunca tinha a mesma aparência. Aquilo me pareceu tão estranho e confuso que até a clareza geométrica do ambiente parecia ter se perdido pela minha falta de atenção a ela. Procurei então buscar a causa deste comportamento tão insólito e me aproximei um pouco. As pessoas estavam interagindo de todas as formas, mas, principalmente estavam se digladiando, disputando espaço para permanecerem mais à superfície do bolo. Inúmeras delas arranhavam, puxavam, empurravam e mordiam as outras e então percebi que umas acabavam tirando pedaços das outras num processo sem tréguas e sem pausa. De repente uma delas arrancou um olho de outra e com um fio de carne que pendia tentava atar as mãos da outra. Senti enorme horror pela situação, mas, mesmo assim não pude tirar os olhos das pobres criaturas ali presentes. Percebi chocado que não eram pessoas especiais ou incomuns, eram pessoas normais ali representadas. Não eram nem boas nem más segundo o senso comum e estavam ali vivendo simbolicamente suas vidas cotidianas.
Depois de ter visto tanta beleza e paz no caminho até aquele ambiente, o que proporcionara alívio e serenidade para minha alma tão torturada, não era justo presenciar aquela cena. A que me servia ter presenciado tanto horror e tristeza? Por que, meu Deus, tanto caos e despropósito na vida humana? A que atendiam nossos instintos reptilianos, nossas emoções de mamíferos e nossa pretensa razão humana se estavam a serviço desta eterna guerra despropositada? Quis sair dali, fugir, e não pude. Um torpor em minhas pernas e uma fixação forçada da minha atenção me obrigaram a continuar presenciando aquela cena dantesca. Para meu horror as pessoas começaram a ficar descarnadas e pedaços eram arrancados, lançados para fora do bolo e desapareciam. Por fim até os ossos foram lançados fora. O processo foi chegando ao fim e as pessoas foram desaparecendo, mudando de aparência na realidade, e ficaram agrupadas suspensas no ar inúmeras formas geometrias planas, ligeiramente luminosas e transparentes. Havia triângulos, círculos, elipses, quadrados, etc. de todas as cores e tamanhos em eterno movimento se tocando e colidindo. Agora não mais tiravam pedaços umas das outras, mas sim, sons puros e cristalinos de diversos timbres quando se entrechocavam suavemente. Uma suave melodia pairava no ar devido aos choques entre elas. Não uma melodia usual, mas aleatória e ao mesmo tempo regular, indefinível na realidade.
Até hoje não entendo o sonho que tive, mas me vem uma imagem de pedras de rio, aquelas dos rios cristalinos que se tornam lisas por rolarem umas sobre as outras pela ação da correnteza de um rio que canta eternamente um hino de adoração ao fluir e ao transformar.
José Renato
2008

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

DEFICIENTE

     Sempre fui deficiente. Deficiente de coragem e abundante em medo. Tive medo do escuro e seus monstros imaginários, medo da morte e seus mistérios e horrores, medo da escola na figura dos outros, medo da rejeição dos amigos e namoradas, dos primeiros e últimos empregos, do fracasso, medo do todo e medo do nada.
 
     Sempre fui deficiente. Deficiente de sabedoria e bom senso. Julguei errado as pessoas e situações. Adotei posturas e ações equivocadas e tolas. Falei muita tolice quando pretendi falar sério. Tomei muitas vezes o caminho errado julgando ser o certo.
 
     Sempre fui deficiente. Deficiente de inteligência. Percebi mal o mecanismo do mundo. Interpretei mal as ações das pessoas e seus sentimentos. Modelei errado o meu papel no mundo. Todos os frutos do meu pensamento foram obtidos com enorme dificuldade e foram frustrantes.
 
     Sempre fui deficiente. Deficiente de sentimentos. Sempre procurei o amor dos outros e nada achei. Desconsiderei o meu guardado onde nenhum outro alcança e acessa. Confundi todos os tipos e espécies de amor, troquei uns pelos outros. Troquei a sua plenitude pelo vazio da fome.
 
     Sempre fui proficiente. Abundante em más ações e piores reações. Rico em mágoas remoídas, mastigadas e guardadas avaramente. Repleto de desejos e anseios malsãos. Cheio de vícios e compulsões. Sempre célere em julgar, sentenciar e penalizar.
 
     Hoje que sei o que fui, o que sou e talvez o que serei não consigo me colocar acima do mais baixo dos seres humanos. Busco, com sucesso relativo, dar o braço ao sujo e ao roto para andarmos juntos. E não sei mais quem está ajudando quem.

logotipo[1]


José Renato, 21/08/2009

terça-feira, 28 de julho de 2009

Não poema e não prosa

I piccoli poveri di Assisi desejou tanto a pobreza que esta se tornou o seu inestimável tesouro. Beijou de maneira neurótica o leproso na boca. A dúvida me atormenta. O que é a verdadeira pobreza que nos aproxima do amor? A pobreza ostenta a pobreza? Um verdadeiramente pobre escreve poesias?


Eu não, eu - 28/07/2009

segunda-feira, 27 de julho de 2009

O mar do amar

O mar me assusta.
Não tem calçada, não tem rua,
não tem onde colocar meus pés.
Se eles flutuam o tempo todo perdem a planta,
somem os solados,
mas não nascem nadadeiras.
O mar do amar não dá pé.
Afundo, bóio, nado.
Mas não sou peixe e logo me canso.
Vim do mar faz tempo,
perdi a memória natatória.
E o mar do amar é fundo,
não dá pé.
Respiro líquido somente no útero materno,
no mar preciso nadar sobre as ondas pra respirar.
Uma contradição.
Como amar sem mergulhar profundo?
Eugênia Amaral

sábado, 25 de julho de 2009

Rei vermelho

Alice nos disse que foi para o inverso,
grande tolice, para explicar o verso.
Sonhou com o Rei com o verso a sonhar
O verso acabar é da lei se o Rei acordar.
Se Alice acorda o inverso finda
e Alice no verso será ainda?
É sonho o que sonha o sonho que sonha?
Meu Deus que ilusão medonha!
O verso e o inverso são um no diverso?
Me expliquei nos meus versos?

José Renato
25/07/2009

The Red King Sleeping (rough draft) por kenneth_rougeau.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Zequinha

Será que todos lembram da primeira grande decepção ou desilusão. Não sei, mas todos mantêm vivida na memória uma grande desilusão que pensam ser a primeira. Zequinha tinha a sua.
Zequinha fora sempre um menino muito sonhador, sempre às voltas com seus livros de contos de fadas e depois de aventuras juvenis. Não era muito falante ou comunicativo vivendo em um mundo muito particular. A não ser as turras com irmãos e pais pouco falava. Se falava era apenas o trivial para pedir ou reclamar de coisas. Se precisasse conversar, não conversava. Lembra-se até hoje do sentimento predominante durante um período determinado de sua infância, solidão. Por outro lado, sempre acabava brigando com todo e qualquer um que invadisse o seu espaço particular.
Certo dia, num domingo, foi com seus pais para o sítio de um seu tio-avô que ficava na periferia da cidadezinha na qual havia nascido. Isto se deu quando ele tinha seus dez anos de idade, tanto quanto podia lembrar. Nestas ocasiões seus avós e vários tios e tias-avós bem como tios, tias e primos se reuniam em grandes almoços barulhentos em torno de uma grande mesa composta de tábuas sobre cavaletes dentro de um galpão. Como o número de irmão e irmãs dos avós era muito grande era óbvio que muitas avós compareciam ao almoço e ajudavam na preparação da comida. A mesa posta apresentava uma fantástica quantidade e variedade de comida da vovó do sítio. Enquanto as mulheres trabalhavam na cozinha os homens matavam e depenavam galinhas, angolas e patos; matavam porcos, pelavam e descarnavam preparando lingüiças, chouriços, etc. E, enquanto faziam isto, bebiam suas cervejas e suas pingas de tal forma que bem antes do almoço começar já todos estavam falando alto coisas pouco sérias e rindo muito.
As crianças tinham que não atrapalhar e, portanto, não tinham muito que fazer. Zequinha não podia se lembrar de muitas ocasiões em que havia outras crianças para brincar. Não possuía nenhum primo ou prima de sua idade no ramo da família destes seus avós. Ele invariavelmente sentia-se muito solitário. Ficava zanzando por perto da casa porque também não tinha permissão para se afastar muito já que por mais prosaico que seja um sítio sempre há coisas perigosas para uma criança pequena. Ele ficava observando os animais, as coisas e locais do sítio sempre fascinado por tudo.
O sítio ficava em uma encosta suave e parte do topo de uma pequena colina. A casa, o galpão, a pocilga, as construções enfim, ficavam quase no topo da colina quando o terreno começava a ficar plano. A pocilga, o local de ordenha das vacas, a pequena coberta onde se matavam, escaldavam e pelavam porcos ficavam na parte de trás da casa na direção de colina abaixo. Logo em seguida vinha o pasto bastante extenso para ambos os lados e que acabava no final da encosta em um pequeno rio margeado por uma mata. Mas o que mais chamou a atenção de Zequinha naquele dia foi o campo de cultivo que se situava à esquerda da casa distante uns duzentos metros e logo após uma pequena plantação de eucaliptos. Ele passou parte da manhã a olhar aquele campo admirando a sua beleza.
No campo existia uma plantação de alfafa de um verde azulado tão homogêneo e fechado que mais parecia um tapete imenso de rara beleza. Quando batia o vento ligeira ondulação percorria todo o campo formando figuras variáveis e muito bonitas. Na inocência dos seus dez anos Zequinha passou a imaginar-se correndo e se jogando sobre o solo coberto com tão magnífica cobertura. Quão maravilhoso não seria sentir-se sobre aquela maciez verde. Deveria ser como andar sobre nuvens sem sentir a aspereza do solo, a secura da terra. Seria o paraíso viver naquela perfeição. Teve fé pela primeira vez na vida na existência do paraíso e, ainda por cima, aqui na Terra.
Tão desejoso ficou de vivenciar o seu sonho que esperou todos dormirem depois do almoço e, desobedecendo a seus pais, partiu para explorar aquela parte do sítio. A própria tomada de decisão e realização da caminhada até o campo de alfafa foi uma aventura cheia de mistério. Com o sol a pino e sob um calor intenso caminhou em direção ao manto verde com o coração aos pulos e felicidade antecipada. À medida que se aproximava do local foi percebendo que o verde não era tão homogêneo como imaginava e o princípio de um desconforto se instalou em seu peito. Quando adentrou a plantação viu o solo sob as plantas tão áspero e quente quanto fora dela e os seus pés descalços doíam quando pisava nas plantas que possuíam caules finos e duros. Não foi muito adiante. O vazio e perplexidades que sentia o paralisaram e um pensamento precoce passou pela sua mente: “a perfeição só existe de longe e nunca pode ser alcançada”.
Desde então começou a procurar o campo de alfafa perfeito aonde fosse e com quem estivesse. A partir daí colecionou uma seqüência de desilusões, coisa dispensável se tivesse aceitado a conclusão inicial pelo coração e não somente com o intelecto. Procurou primeiro na sabedoria que perseguiu tenazmente até entender que era por demais falível para adquiri-la. Procurou depois nas religiões até perceber que era por demais crítico para ter fé incondicional. Procurou nas mulheres durante muito mais tempo e mais intensamente que nas demais possibilidades até perceber que a união de dois falíveis não poderia produzir interações perfeitas.
Na juventude se juntou a tribos em cujo convívio todos os enigmas, mistérios, dúvidas, medos e desilusões eram mascarados por conversas ruidosas, músicas cacofônicas ou melódicas em alto volume e festas regadas a cerveja. Os sonhos cor de rosa de romance e aventura com muito sexo, viagens e fartura ainda existiam. Para sempre aqueles jovens diriam que aquela tinha sido a melhor época de suas vidas, mas pensariam secretamente que também a pior de todas. Os sonhos e amores nasciam como espinhas em rosto de adolescentes, no entanto ao contrário destas gerando prazer quando nasciam e frustração quando morriam.
À medida que envelhecia passou a conhecer melhor os amigos e os amores e todos os seus defeitos e insuficiências passaram a ser percebidos; não eram diferentes dos seus. Percebeu que, assim como ele, todos buscavam no outro a fonte de sua felicidade e se esta não se cumpria a culpa era sempre do outro. Os conflitos, as cobranças, se multiplicavam na busca de transformar o mundo num lugar de perfeição pela ação do próximo. Dores, feridas, cicatrizas e desilusões se multiplicaram.
A consciência de sua mortalidade se tornava cada vez mais forte. E a inutilidade daquele tipo de vida se tornava cada vez mais evidente e se viu num beco sem saída. Para seu desespero ninguém tinha resposta para suas angústias, pois estavam no mesmo barco da ignorância. Os jovens de outras tribos, outros costumes e moral estavam cometendo os mesmos erros mascarados sob outras músicas, roupas, brincos e cortes de cabelo. Os mais velhos, quase todos, evidentemente não tinha descoberto o grande segredo.
Um dia alguém lhe falou de uma nova ciência: a ciência da paz, a paciência, que conferia serenidade. Ele procurou então o cientista que inventara esta ciência e um professor que a pudesse ensinar. Mas todos a conheciam mal e de segunda mão, e nenhum a podia praticar perfeitamente. Mas se não havia sábios perfeitamente pacientes como poderia o estado das coisas nas relações coletivas ou particulares ser culpa de alguém e dele inclusive? Descobriu que o princípio básico desta ciência era perdoar. Perdoar diariamente tudo e a todos, o outro e a si mesmo. Só que ele não sabia perdoar, pelo menos não completamente, e não sabia como aprender a fazê-lo.
A Zequinha restou apenas procurar entender e praticar constantemente e confiar no tempo e no vento das mudanças. Depois de um certo tempo começou a enxergar as pessoas como pés de alfafa formando no coletivo uma grande plantação ondulando sob efeito de ventos às vezes fracos às vezes fortes e que se aprendesse a olhar de maneira mais distante, de um novo ponto de vista, poderia perceber a beleza do padrão. Zequinha ainda não é em paz, mas desde então volta freqüentemente a ser aquele menino sentado na soleira da porta olhando o mundo com suas plantações tão bonitas.
José Renato, 199?

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Lugar comum

Bastaram alguns telefonemas e saimos para jantar.
Saímos de onde e onde fomos entrar?
Importa? Sair, entrar?
Mudar sempre no mesmo lugar.

E fomos. E falamos de tudo,
de nossas insuficiências, deficiências
e até de algumas indecências.
E rimos, rimos ,...

Falamos de muitas dores,
de muitos amores e
muito dos seus sabores.
E rimos, rimos,...

Falamos de sexos
da falta de nexos
de desejos convexos
E rimos, rimos,...

Falamos de política
da nação paralítica
instituição sifilítica
E rimos, rimos...

Falamos da vida
das muitas tragédias
das muitas comédias
E rimos, rimos,...

Falamos de mim
Falamos de ti
falamos deles
E sorrimos

E reaquecidos
rejuvencescidos
saímos dali
voltamos para nós

Delicioso!



José Renato
08/06/2009

 

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Caminhos

O amar é um mar,
se aprisionar
a uma bússola
contendo todas as rotas


José Renato Delben
03/06/2009

segunda-feira, 11 de maio de 2009

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Linda manhã de domingo

O menino saíra com seu pai e seu tio, apenas pela companhia, que foram conversar sobre assuntos seus de adulto no fundo do terreno da sua casa. O terreno era separado por um pasto enorme quase no meio da cidade por poucos arames mal postos em palanques já comidos pelo tempo. Ele não prestava atenção na conversa. Olhava o céu sem nuvens muito azul, tão limpo que o azul se tornara profundo. Observava também o pasto meio ressequido pela falta de chuva daquele verão tão quente. À sua esquerda, a não muitas quadras de distancia, quase no topo da encosta que começava na estrada que separava seu bairro do centro da cidade, avistava o cinema. Podia ouvir as musicas de domingo que o cinema tocava para toda cidade ouvir nas horas que precediam a matinê. A cidade era muito pequena e parada.
Não era ruim de se viver naquela cidade se fosse criança e possuísse alguns trocados no domingo. Depois do almoço, pelo meio da tarde, toda criança que os possuísse ia à matinê. O almoço de domingo era por si só um grande evento, vinham avós, tios e primos trazendo pratos especiais de cada dona de casa e regavam-se de cerveja. Muita conversa, confraternização e eventualmente discórdia permeavam este almoço. Após uma soneca lá se iam para o cinema as crianças carregadas de bugigangas. De bugigangas sim, pois o cinema não tinha necessariamente o filme como maior atração. Naquela cidade em que o dinheiro era tão escasso e por isso as pequenas inutilidades prioritárias para os pequenos eram relegadas ao último lugar na escala de prioridades dos adultos, o cinema era fundamental. Lá se praticava o comercio de troca de figurinhas e gibis. Os álbuns de figurinhas eram mania entre a molecada. Os temas dos álbuns eram tão variados quanto eram os sonhos da meninada. Havia álbuns sobre os times do campeonato nacional de futebol, suas escalações e craques da época. Outros versavam sobre cantores famosos, carros possantes e filmes de grande impacto. Os álbuns de filmes quando preenchidos reproduziam em quadrinhos a história completa e, na época, os mais procurados foram sobre os filmes Bem Hur e El Cid. As figurinhas eram vendidas em pequenos envelopes lacrados contendo três figurinhas aleatórias que invariavelmente vinham repetidas ficando os meninos com muito mais figurinhas repetidas do que as contidas no álbum. Era necessário comprar muitos envelopes para preencher um álbum de forma que ninguém conseguia preenchê-los. Deste fato surgiu o comercio de trocas. Todos levavam suas figurinhas ao cinema e saiam à procura de quem possuía as que faltavam para trocar. A mesma coisa acontecia com os gibis. Ninguém tinha dinheiro para comprar todo mês todas as revistas que desejava, então se trocavam os gibis já muito lidos por outros no cinema. Que fascinação causavam o Tarzan, o Zorro, o Mandrake, Batman, Super-Homen e os de guerra. A troca por um, dois ou três dependia da raridade das revistas e figurinhas, do estado de conservação e do desejo de possuí-las. A espera pela matinê já tornava o domingo especial e a ansiedade acompanhava as crianças durante o dia todo.
Aquela manhã de domingo, como tantas outras, se apresentava magnífica e enquanto andavam, ouvindo a conversa baixa dos adultos, ouvia-se também e somente, tizius cantando e o som dos passos sobre o pasto ressecado. De repente não se sabe se pela amplidão do mundo só então percebida ou por algo ouvido da conversa sem notar algo horrível aconteceu. Ele se sentiu só, mas de uma solidão tamanha que sentiu vontade de chorar e não chorou. Não haveria remissão no choro, tampouco remédio para aquele mal paralisante. Pela primeira vez na vida sentiu que era ele, só ele, apartado de todos e do mundo. Ele não era um apêndice de seus pais conectado à família indissoluvelmente, ele não era seus pais. Ele ficou só a partir de então mesmo quando junto de muita gente, mesmo fazendo muito barulho em conjunto com amigos. O barulho, a bagunça, a mistura caótica de personalidades jovens nunca mais o fariam esquecer que era ele, só ele. Que inseto horrendo implantou tão pesadas e cinzentas larvas de opressão num coração tão jovem e ficou voejando à espera, zumbindo tão monotonamente e projetando tão escura sombra? Que faz alguém que teve tal sentimento e percepção tão jovem pelo resto da vida? Tem alguma visão redentora posteriormente? Parte à busca de sexo desenfreado? Procura o poder como se fosse um jogo excitante? Torna-se deprimido e apático? Não soube, não sei e talves nunca saiba. Mas na lembrança aquela manhã de domingo era magnífica.


José Renato J. Delben

2007

segunda-feira, 27 de abril de 2009

O fantástico mundo de Bob

Um gato acaba de pular do meu inconsciente.
Uma imagem que não é nada eficiente.
Penso que meu cérebro é deficiente
Quando acabo de estar catatônico

O mundo não é nada faraônico
Será que estou tomando biotônico?
Ou, talvez, estou ficando afônico.
Meu Deus! Onde está o meu pé?

Acho que eu perdi a fé.
Só quando não tomo café.
Será que estou com chulé?

Será que fui comovente,
No meu poema nada canônico?
Um dia eu compro um coupè.


Luiz Plaça

sábado, 25 de abril de 2009

Encarnação

Para se batizar uma criança deve-se deixá-la mamar em seio farto e depois levá-la para mijar na terra e deixar que ela beba vento.

José Renato
25/04/2009

Infinito


Há uma ponta na meada?
Então há outra doutro lado.
O fio é finito.

Há um c(um)e hierarquico?
Então há uma quadra-base.
A pirâmide é finita.

Mas...

Onde todo nome desaparece.
toda definição esvanece,
o senso comum é absurdo.

Não há substantivos
predicados, pronomes.
Só há verbos.

Todos os verbos são um.
E tudo se submete a tudo

Tudo é e está sujeito

Uuuhhhhhmmmmmmmmmmmm.....

]
José Renato
25/04/2009

terça-feira, 21 de abril de 2009

Escrever

Escrever? Porque?

Por nada.

Escrever? Para que?

Para nada.

E o nada?

É tudo o que resta.

E já é alguma coisa

E preenche o todo.

E nos completa.


José Renato
23/04/2009

segunda-feira, 20 de abril de 2009

O Labirinto


Helga era uma menina loirinha de cabelos compridos sempre em duas tranças às vezes enroladas no topo da cabeça. Vivia em uma fazenda afastada bem ao norte, região com muitas florestas e montanhas e muito frias. O povo daqueles ermos tinha muitas histórias que se contavam às crianças para evitar que se aventurassem dentro da floresta ou se afastassem muito de suas casas e acabassem se perdendo ou sendo vítimas de animais selvagens. Mas Helga era uma menina muito curiosa em sua grande afetuosidade por gente e bichos. Por estas coisas era muito corajosa e vivia se aventurando nos limites entre as regiões conhecidas e as mais selvagens, sempre à busca de entender os seres vivos e interagir com eles.
Corria por aquelas terras a lenda sobre um monstro que habitava dentro da floresta densa ao norte. Surgira porque sempre que o vento norte soprava trazia sons de urros ferozes. Tão ferozes eram, desesperadamente ferozes, que quando começavam os trabalhadores no campo abreviavam suas jornadas em busca do abrigo de seus lares e suas esposas e filhos os aguardavam ansiosamente trancados. O dia seguinte sempre era de poucas conversas com todos mostrando em suas posturas e fisionomias um alheamento pensativo como se ainda estivessem ouvindo dentro de si aqueles sons, menos Helga.
Helga não tinha lugares tristes do passado onde aqueles sons pudessem fazer eco dentro dela e achava simplesmente que era um animal selvagem agindo de forma natural. Tinha medo, mas o natural frente a uma força superior à sua, o mesmo que teria defronte a qualquer outro animal selvagem. Era sempre a última a chegar em casa nestes dias e ficou muitas vezes de castigo por isto. Mas suas qualidades e falta de medo sempre a faziam se aventurar um pouquinho mais longe.
Um dia, quase às vésperas de completar doze anos, estava passeando pela orla da floresta num dia cheio somente de sons alegres de pássaros e insetos. Foi então que no canto de sua visão avistou um animalzinho branco que não conseguiu identificar porque correu rapidamente para dentro do mato. Ela o seguiu para ver melhor o que era e continuo seguindo durante certo tempo pensando que toca do bichinho estava próxima e não teria problemas em seguir um pouco mais. Mas não conseguiu alcançar o animal e logo viu que não podia continuar e resolveu voltar. Tomou o caminho de volta, segura que logo estaria fora, mas estava demorando demais para chegar à borda da floresta. Não se preocupou pensando ter entrado só um pouquinho mais que devia e que a qualquer momento veria a luz do campo aberto. Este momento demorou a chegar e ela estava começando a se preocupar quando os urros da fera da floresta começaram. Um arrepio gelado partiu de sua nuca, se espalhou por todo o corpo e ficou residindo na boca do estômago. Mas, atrevida, se controlou e continuou na sua busca de uma saída, afinal os urros pareciam estar vindo de muito longe. Depois de certo tempo viu uma trilha e se encheu de esperanças, pois onde há um caminho deve haver uma saída. Mas pouco tempo depois o caminho se bifurcou e foi obrigada a escolher um deles e seguir em frente. Para seu desespero isto aconteceu diversas vezes até que teve a certeza que se encontrava perdida. Os urros da fera se mantinham sem parar em diversos tons e alturas ainda ao longe e um sentimento de desespero e fatalidade foi tomando conta de Helga. Sentou-se desconsolada e chorou alto e nisto os urros pareceram se tornar mais angustiados. Ela parou então assustada achando que a fera podia estar ouvindo o seu choro. Sabia que morreria de fome se parasse a espera de ajuda, ninguém entraria ali para procurá-la. Continuou andando então como único recurso de salvação.
Andou por horas e os sons de fúria e desespero de tanto martelar tomavam conta de seus pensamentos substituindo a razão por irritação e pavor. Já não conseguia escolher os caminhos claramente e tomava aqueles nos quais os urros pareciam menos assustadores. Andou, andou até anoitecer quando exausta escolheu um oco em uma grande árvore onde se encolheu toda e acabou adormecendo quando o cansaço venceu o pavor. Foi um sono cheio de pesadelos nos quais se angustiava para entender o que diziam os urros. Neles tinha certeza que tinha necessidade de entendê-los.
Acordou cansada e tomando consciência da sua situação começou o dia chorando novamente no que a fera fez-lhe coro urrando com aparência de desespero. Começou a andar novamente, mas agora a floresta parecia estar cheia de caminhos que se encontravam e se desencontravam formando um labirinto. Ela tinha então que decidir a toda hora que caminho tomar. Mas, engraçado, parecia que o som da fera era diferente em cada caminho escolhido. Em uns parecia mais raivosos e em outros mais sofridos, raivosos ou desesperados. Mas um ou outro eram sempre terrivelmente assustadores e Helga tinha que decidir sempre se enfrentava a ira ou o desespero. Escolhia então na hora que chegava à bifurcação segundo o que lhe parecia menos desagradável. E assim foi até cerca de meio-dia quando a floresta passou a ficar mais densa e escura e os urros pareciam estar mais próximos. Isto tornava o seu medo maior e ela passou a apressar o passo tentando fugir, mas como num sonho parecia que ia ao encontro daquilo de que queria fugir. Quanto mais próximo pareciam os urros, mais distintos ficavam e então às vezes pareciam apenas um choro desesperado e em outras também de pura revolta. Helga começou a achar que talvez a escolha dos caminhos nos quais os sons pareciam menos desagradáveis poderia estar levando-a para perto do monstro, mas ainda assim não conseguia fazer uma escolha diferente e estava fadada a encontrá-lo, desesperou-se. A tarde avançava já para o seu fim e os urros começaram a parecer apenas vozes ferozes de dor, revolta, medo, expressas em gritos e palavras horríveis e Helga achou que no fim acabaria se confrontando com uma criatura desumanizada, uma humana fera selvagem e possivelmente assassina. Seguia agora como um robô aceitando fatalisticamente a sua sorte e a sua morte. Quando o dia já estava terminando os sons começaram a mudar rapidamente se tornando apenas um choro desesperado misturado a pedidos de ajuda, misturados com palavras de revolta. E ao por do sol a floresta se abriu em uma pequena clareira com uma grande árvore no centro sob a qual se encontrava um menino mais ou menos da sua idade chorando solitariamente em imensa tristeza. Todo o medo de Helga se esvaneceu em pena, tristeza e comiseração. Aproximou-se lentamente do menino e foi vista. O menino continuou chorando enquanto ela se aproximava, mas agora em tristeza calma e com um sorriso nos lábios. Quando ela deu a mão ele disse – “que bom que me encontrou”. Ao que ela respondeu – “você me obrigou”. Depois disto conversaram coisas de criança até adormecerem. Ao amanhecer buscaram e encontraram uma saída da floresta não sem dificuldades, mas não havia mais choro e ranger de dentes. Havia tempo agora até para observar os pequenos animais da floresta.
Décadas depois sentados em suas cadeiras de balanço na varanda voltada para o norte e para a floresta ainda pareciam ouvir muito ao longe um urro quando o vento soprava daquela direção. O que tinha naqueles labirintos das florestas geladas do norte que aprisionavam o choro das crianças misturando-o nas trilhas e transformando em urros e imprecações? E porque após décadas pareciam ouvi-los ainda?


José Renato Delben

20/04/2009

quinta-feira, 9 de abril de 2009

O pirata e o tesouro




Na proa dos barcos reconhecemos
os ventos tropicais.
Um cais torna-nos marinheiros
de um destino sem remorsos.
Ninguém põe em causa a perfeição
do vôo das gaivotas nos corpos dos meninos
que rebolam, pela areia, a inocência do olhar.
Há uma rota, plural de outras rotas,
que pressente naufrágios a poente dos afectos.
Sal que vicia os lábios e magoa
como um punhal de sede.
Braço de água-doce
comprometido com um mar inacessível.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997




Saíra na tenra idade para enfrentar procelas. Não queria a calmaria. Gostava da luz pagã que descia das nuvens em estrondo. Gostava do trovão. Thor, torrente de luz violenta e fugaz. Foi ser marinheiro. No mar enfrentaria tormentas e zombaria do vento e das ondas. Buscaria tesouros e botins e os gastaria entre ruídos, gritos e risos. Enfrentaria calmarias e tormentas, percorreria mil distâncias para momentos de trovão e glória. Nada, nem ninguém, o impediria de sugar da vida tudo que ela pudesse dar. Arrogante frente aos homens e orgulhoso frente a Deus, amealhou riquezas e gastou-as todas, cada momento finda-se em si. Percorreu os sete mares, os mil pesares,os cem mil prazeres e seguiu em frente.
Mas num dia estranho em que o céu estava límpido e o mar estava calmo viu uma escuna ao longe. Que construção mais elegante, que bordejar a barlavento e a sotavento tão precisos e despretensiosos! Parecia tão bem construída para o mar que o mar a acariciava conduzindo-a a bom porto. Devia ser uma nau do rei. Encantado e cobiçoso a perseguiu. Pois que tesouros não poderia conter? E a cada bordejar delicado, enquanto a seguia, mais se encantava.
Por fim a alcançou. E depois de luta feroz durante a qual nunca sentira tanto medo a tomou de assalto. O medo não era do insucesso, mas sim de ferir e destruir tanta beleza e elegância. Mas a cobiça do belo e do valor falou mais alto e invadiu seu convés exigindo rendição. A tripulação daquele navio, nobre de condição e de espírito, não ofereceu resistência, a não ser a pacífica, e viu até bondade onde só havia fúria. Entregou seus tesouros guardados no porão. O Pirata embevecido pelo seu entorno de finos entalhes e adereços do navio não viu a principio o tesouro que estava sendo saqueado e transportado para o porão do seu navio.
Terminado o glorioso embate retornou vaidoso da sua vitória para seu navio. E o achou pavoroso. Tinha sido conquistado no espírito. Invadira de maneira cruel e inconseqüente e fora invadido pela beleza e suavidade da outra nau. Que lugar feio o que vivia. Mas a legião dos seus asseclas exigiu que o tesouro amealhado fosse levado como premio da glória conquistada e ele sem forças atendeu.
Mas ele não era mais o mesmo Pirata, havia mudado. Como capitão de seu navio foi conferir o tesouro roubado. E que surpresa! Quanto ouro e pedras preciosas! Mas não eram moedas ou objetos grosseiros que haviam sido feitos para que cobiçosos juntassem riquezas em seus cofres, parede e aposentos disfarçados de arte. Eram objetos tão belos feitos por artistas que não só tinham conhecimento da arte com amor por ela. E uma dor imensa confrangeu-lhe o peito. Como poderia gastar aquele tesouro sem derretê-lo em lingotes ou moedas? E o belo? O maior valor daquele tesouro não era o ouro e as pedras, mas a finura de sua constituição, e gastá-lo seria corrompê-lo. Passou semanas recluso em sua cabine e na sala do tesouro. Meditou, pensou, ponderou e decidiu. Iria guardar aquele tesouro em lugar seguro e protegido, esconde-lo de tal forma que nenhum dos outros Piratas do seu navio pudesse achar. Percorreu as Antilhas, o mar do Japão, da China e do Pacífico sul até achar a ilha mais deserta, inóspita e árida na sua busca. Encontrou.
Capitão e senhor absoluto de seu navio e da Legião que o acompanhava, como até então achava, descobriu que só o fora pelo consentimento de seus asseclas. Enquanto fizera a vontade deles fora senhor, mas descobriu que escravo também fora. E a Legião queria gastar todo o tesouro nos bares das Antilhas e Tortuga. A partir deste momento ficou só de tornar-se uma ilha inóspita e deserta afastada de toda a civilização, já não fazia parte da turba e não tinha mais companheiros. Então apelando pela cobiça e imediatismo da tripulação convenceu-os de que tamanho tesouro só dificultaria a navegação rápida e a caça de outros botins. Poderiam voltar depois para buscá-lo quando tivessem juntado bastante para gastar com excessos. Transportaram todo o tesouro para aquela ilha deserta e o enterraram no solo arenoso tão quente que lhes queimava os pés e as mãos. Mas no Pirata queimava a alma.
No dia seguinte foram-se para a imensidão azul. Todos olhavam à frente nas suas tarefas em grande buliço ansiando por mais aventuras, Menos o Pirata. Ele ficou na popa olhando para traz.

Sábado


O dia da criação

(Vinícius de Moraes)


Assombrosa coincidência! Aqui onde moro e tomo solitário a minha taça de vinho ... é sábado. E o universo invade e me assombra. E a cicatriz de onde Me tomaste uma costela arde em fogo.

José Renato, 04/04/2009, sábado

terça-feira, 31 de março de 2009

Tolo coração

A Saudade faceira provocou o juvenil coração para uma corrida através do tempo. Por não compreender o tempo e a Saudade, o tolo coração aceitou rapidamente sem saber que perderia se ganhasse, empatasse ou perdesse tal maligna corrida. De início a jovem Saudade partiu célere na frente e tomou distância. O jovem coração ficou vendo-a se distanciar imaginava como seria o caminho por onde estava passando a Saudade e fantasiava como seria bom o caminho do futuro. Sentiu então saudades do porvir sombreando o tempo presente. Mas o jovem coração se fortaleceu durante a corrida e foi alcançando a Saudade tornando presentes os tempos futuros por onde a Saudade passara. Quanto mais próximo chegava mais saudades sentia, mas agora, do tempo presente. O tempo presente não era o que imaginara e ele sentiu saudades do tempo presente que havia sonhado sombreando novamente o tempo presente. Como a Saudade foi envelhecendo, a ultrapassou num certo momento e ficou imaginando a Saudade percorrendo os caminhos por onde ele passara e a Saudade na distância coloria a paisagem do tempo passado e ele passou a sentir saudades do passado. E isto sombreou novamente o tempo presente. O tolo coração lamentava entre gemidos – Ai coração! Como sou tolo por nunca estar!
José Renato, 31/06/2009

domingo, 29 de março de 2009

EXATIDÃO

Matemática maravilhosa
um mais um mais que dois
um menos um maior que um.

Matéria fantástica
Do que se tira aumenta
O que se põe multiplica

Mágica etérea
A Música produz Silêncio
O silêncio ensurdece

Final enigma
A multiplicidade esvanece
A unidade preenche o universo


José Renato, 29/03/2009

quarta-feira, 25 de março de 2009

O Porcex


Durante um breve instante, pensei ter estado em uma viagem alucinógena. Parecia estar contente por ter feito amizade com um porco voador. Tudo estava fora de si. Eu estava fora de mim, o porco também estava fora de si. Tinha uma doninha - apesar de não saber o que é uma doninha - que também estava fora de si.
Não sei se o que vi era o porco em si, ou apenas o que estava fora do porco, pois o porco estava fora de si. Deveria ser o fora de si, pois, como não conheço doninhas, não podia ser uma doninha de verdade.
Esqueça a doninha, estávamos falando do fora de si do porco. Chamemo-lo de “Porco externo” ou “Porcex”. Como dizia, o Porcex estava impressionado com a notícia que acabara de ler: “EXTRA! EXTRA! Canibal vegetariano devora planta carnívora”.
“O que significa essa frase?” – indagou o porco. Parecia não fazer sentido. Apesar de que ela parecia ser real. Também não fazia mesmo sentido um porco ler uma notícia. Mas não esqueçamos de que era o Porcex.
Um porco externo possui algumas características, ou melhor, não possui algumas características: ele é privado de suas partes corpóreas, ou seja, não possui toucinho, nem paleta, nem pernil, nem costelinhas, nem orelhas e nem pés; os 4 pés. Porco tem mão? Bom, não importa, porque o Porcex não tem mão mesmo. Mas uma coisa muito boa mesmo dos porcex’s e que eles podem ler notícias. Ah! Eles também podem voar, já que era um porcex voador.
Mas tão logo pude pensar no significado da notícia, a viagem acabou e o Porcex sumiu, a doninha também.
Quando retornei para dentro de mim restaram algumas questões: O que significava aquela notícia? Por que o porco podia voar? E o que, diabos, é uma doninha?
Comecemos pelo o que é uma doninha? Doninha é um mamífero, carnívoro, da família dos mustelídeos e seu nome científico é Mustela nivalis. Ela é encontrada em toda a Europa e Ásia e norte da África. Ela pode ter de 20 a 42 cm de comprimento e pesar de 30 a 80g. Os dejetos têm pequenas dimensões e são geralmente compridos e retorcidos, sendo muitas vezes depositados em cima de muros de pedra ou sob a vegetação. Parece um furão, penso que são da mesma família.
Acredito que o significado da notícia está intimamente relacionado com o fato de que o porco podia voar. Veja bem, o Porcex era não-corpóreo, não tinha imagem, logo, não poderia vê-lo voando. Por outro lado, eu também era um ser não-corpóreo, portanto, não tinha olhos, logo.... bom, logo, não poderia ver. Porém era uma alucinação minha, não tinha a mínima intenção de fazer algum sentido lógico. E é aí que mora a relação com o significado da notícia.
Isso significa que estou ficando louco.


Luiz Felipe Plaça,
25/03/2009

quinta-feira, 19 de março de 2009

ZEN MOSQUITOS

Havia um homem com uma nuvem de mosquitos ao seu redor. Ele abanava as mãos insistentemente para espantá-los. Sem sucesso levava inúmeras picadas irritantes pelo corpo todo. Estava a uma eternidade neste trabalho de Sisifo. Num momento ele compreendeu e então não havia mais mãos, nem corpo e nem mosquitos.
José Renato, 19/03/2009

segunda-feira, 16 de março de 2009

A VIAGEM

Ele rezara por sabedoria, durante muitos anos assim o fizera. Muitos pediam dinheiro, saúde, mulheres e sucesso, ele também pedira a Deus todas estas coisas, mas apenas como acessórias. O que o incomodava era a profunda ignorância de todos os homens sobre todas as coisas. Muito mais tarde, quando estava prestes a entrar na adolescência, descobriu que o motivo de suas preces era o medo. Possuía um medo insano da morte, mas principalmente do depois da morte. Tinha medo da finitude e também da infinitude, do temporário e da eternidade e não sabia do que mais tinha medo, pois todas as opções lhe pareciam inadequadas. Leu, estudou e pensou muito, mas não chegava a arranhar o véu de mistério que ocultava todas as coisas.
Houve uma época que passou a orar a Deus para que este lhe enviasse um sinal de sua existência ou de não existência. A sua parte racional, até que não desprezível, não intervia para fazer cessar este pensamento absurdo. Como é que um Deus que não existia poderia enviar uma mensagem dizendo que não existia? Seu comportamento e seu pensar deixaram de ser equilibrados, se um dia já houvessem sido, para serem completamente emocionais.
Um dia, a bem da verdade uma noite, desesperado com a injustiça de possuir a faculdade de perceber a sua mortalidade e o seu tamanho relativo em face da infinitude do universo orou de maneira quase raivosa exigindo uma resposta. Isto era uma total insanidade. Adormeceu sem nenhuma esperança de obter respostas para suas perguntas, mas naquela noite teve um sonho.
Sonhou que estava escuro, daquela escuridão total que percebemos quando acordamos no meio da noite com todas as portas e janelas fechadas e não temos noção nem de em qual direção está a parede mais próxima. Estava completamente perdido e desorientado. Então sentiu que ao seu lado estava algo ou alguém com um propósito para ele e que o transmitia de forma não verbal. Ou seja, sem palavras, mas ambos sabiam a intenção e o propósito do outro. Foi então transportado vertiginosamente para outro lugar, lugar este não tão escuro quanto o anterior, mas acinzentado e com uma atmosfera que confundia sua percepção visual do seu entorno. Sabia apenas, ou pensou saber, que estava muito acima da superfície terrestre, pois parecia perceber a curvatura terrestre. Neste lugar, e então, pode expressar de maneira coordenada suas dúvidas, mas ainda de maneira não verbal. Novamente começou a se mover, desta feita de maneira vertiginosa, através de uma região nebulosa. Quando se diz nebulosa não quer dizer cheia de nuvens como usualmente são pensadas, mas num ambiente cheio de uma névoa que parecia originar-se principalmente de uma distorção ótica da atmosfera. O ambiente foi ficando cada vez mais claro até que se viu em uma região totalmente vazia do espaço e podia enxergar estrelas como se o céu noturno de uma noite muito límpida o envolvesse por todos os lados. Isto tudo se passou de maneira muito rápida. Finalmente percebeu que estava próximo de um sistema contendo três astros de mesmo tamanho orbitando esfericamente em torno de um centro comum, que poderiam ser estrelas, irradiando luz intensamente, mas esta luz não feria os olhos nem ofuscava a vista. Cada estrela era de cor diferente, mesmo a memória começando a falhar e não podendo mais jurar sobre isto, acreditava que as estrelas eram amarela, azul e rosa. A bem da verdade as cores não pareciam ter importância ou significado especial e a única relevância delas era serem muito relaxantes.
Em presença deste sistema trino de estrelas foi compelido a expressar novamente suas dúvidas e angústias. Passou então a receber ensinamentos agora verbais durante um tempo que não pode precisar, mas cujo conteúdo não era mais que os conceitos de amor e caridade sob diversas formas comuns às religiões terrestres. Então, de maneira bastante mal educada e bem ríspida da qual se envergonharia se o fizesse com outro ser humano, interrompeu o fluxo de conhecimentos. E disse, aproximadamente e de maneira um pouco mais ríspida do que se pode contar, que aquilo já estava careca de saber e que gostaria de saber se possuía alma que sobreviveria a sua morte física, e mais, como tudo morre, mesmo estrelas e galáxias, se sobreviveria à morte do universo. Neste momento fez-se um silencio bastante profundo, sua atenção foi dirigida para uma região do espaço em que uma massa de estrelas se expandiu subitamente e as estrelas na periferia simplesmente sumiram. Ele ouviu uma voz que dizia: nem mesmo eu sei se sobreviverei a isto.
Ele então sentiu uma calma e resignação muito grande e iniciou o percurso de volta numa velocidade tão vertiginosa quanto antes. Quando entrou na região de distorção visual olhou para trás para observar as três estrelas e não pode vê-las na sua forma original. Conforme mexia a cabeça procurando uma visão mais clara, via ora totens tribais, ora deuses hindus, deuses gregos, um ancião de barbas longas e brancas e inumeráveis outros deuses. Ficou extremamente surpreso e pensou então: são todas visões distorcidas de uma mesma realidade inatingível pelo intelecto humano. Em seguida acordou.
José Renato J. Delben 2005

domingo, 8 de março de 2009

Absurdos

Os dois amigos já estavam conversando ha algum tempo quando a conversa se tornou etérea.
Zé Renato - Voce ficou estranho de repente, o que foi?
Luiz Felipe - É que estive com os guardas da fronteira, além do limite do infinito.
Zé Renato -O infinito é um ponto, ponto final.
E pensando um pouco diz - Tudo é finito no infinito, também.
Luiz Felipe - A não ser o mito que o limita.
Zé Renato - Porque o mito é uma refração da Luz Absoluta na névoa da mente.
Ai o Luiz ficando mais parecido ainda com um daqueles quadros escorridos de Dali e com os olhos parecendo olhar cada um para um lado diz - Zé, é melhor a gente ir embora, acho que já bebemos demais.
E sairam pisando na calçada pavimentada com constelações. O diabo é que elas não ficavam paradas!

terça-feira, 3 de março de 2009

O TESOURO

Na casa de sua avó tinha um tesouro. Na verdade havia muitos tesouros, mas este foi o principal por muito tempo. Era um tesouro tão fascinante que não seria mais valioso se contivesse jóias e dinheiros. Mas como ele descobrira este tesouro e que fim levou?
Ele o descobriu porque ia muito à casa de sua avó e era xereta como qualquer criança, mexia em tudo o tempo todo. Nesta época, em sua tenra infância, gostava de ir lá especialmente no inverno porque na ampla cozinha de sua avó tinha um fogão à lenha com uma chapa de ferro enorme e um forno que sempre espantava o frio. Mas gostava sempre de ir lá porque o fogão era uma fonte inesgotável de coisas deliciosas. Num dia eram sonhos, no outro eram bolinhos de chuva, massas fritas de pastéis com açúcar e canela, pastéis de banana, cucas, pães de centeio e de milho e, enfim, uma variedade de outras coisas. Mesmo que não fossem feitos especial e necessariamente para ele, se estivesse lá aproveitaria. Ele lembra até hoje de algumas tardes em que sua avó o levava para o pátio de lenha e descascava laranjas e canas e fatiava melancias para ele. Aquelas frutas tinham um sabor especial, eram melhores e mais saborosas que as que ele mesmo descascava, tinham também um sabor de avó. Ah, não se pode esquecer que bolachas de natal dentre outras eram preparadas naquela cozinha.
Mas, e o tesouro? O tesouro estava numa gaveta da mesa da cozinha. Esta mesa era retangular e de uma simplicidade interiorana. O tampo era feito de tabuas justapostas lado a lado sem nenhum enfeite e do lado sob este tampo havia a gaveta. Na gaveta sua avó guardava os instrumentos especiais da cozinha: forminhas de empadinhas, cortador de massa de pastel, tesoura, formas de cortar bolachas em forma de bonecos, de bichos e estrelas e muito mais. Eram utensílios daqueles antigos, com consistência, peso, forma. Quanta mágica, fascinação e afeto havia naqueles objetos! Se sua avó saia da cozinha ou se virava lá ia ele mexer na gaveta e brincar. Aqueles objetos tão prosaicos, tão simples, eram bens preciosíssimos para ele. Nos momentos em que tocava neles sentia-se num mundo mágico, confortável, aconchegante e pacífico. O mundo brilhava e se tornava mais morno.
O que havia naqueles objetos para que fossem considerados tão preciosos? Ele não sabia explicar, nem tentava ou precisava. Para ele eram preciosos e ponto, acabou. Porque, mesmo que ele não soubesse então, eram os instrumentos mágicos de confecção de tantas delícias tais as varinhas mágicas das fadas e das bruxas boas. E estas delícias eram a expressão gulosa do amor de sua avó. Tudo naquela cozinha cheirava, coloria, brilhava e soava carinho e dedicação e, até mesmo, paciência necessária para aturar aqueles netos traquinas.
Com o tempo aquela coleção de bugigangas foi diminuindo, diminuindo, até restarem pouquíssimas peças. Algumas se desgastaram com o uso e outras foram perdidas pelos netos. No fim eles acabaram se tornando objetos comuns e perderam todo o encanto. Mas o tesouro foi crescendo com o tempo até ficar além de qualquer avaliação. As dádivas daquela casa foram se multiplicando enquanto ele crescia. Algumas vezes eram um refugio para leitura em paz e silêncio, outras vezes um café da tarde surrupiado, um ponto de partida para caçadas com amigos, ou o primeiro emprego arranjado por seu avô. Mas, sempre em todos os tempos a orientação espiritual da sua avó, um espírito muito sofrido, mas muito forte. No avô nunca houve uma palavra áspera para ele, mesmo quando freqüentemente tomava dele o estilingue que com tanta dificuldade era construído.
Ambos os avós eram espíritos muito fortes e nada neles era pequeno, qualidades ou defeitos, mas principalmente o amor. O amor nunca era negado ou rejeitado mesmo que fosse ofertado de maneira torta ou pouco merecido.
Quando já adulto ficou conhecendo a história de vida de seus avós e a tremenda luta pela redenção travada por eles e as enormes vitórias conseguidas mesmo que a guerra ainda estivesse longe de ser ganha. O tesouro dos exemplos de oportunidades perdidas, do não voltar do tempo e de que o que passou não pode mais ser mudado ou consertado.
Naquela casa havia um tesouro e este eram seus avós. Hoje eles estão procurando seus tesouros em outras realidades e o menino se sente muito mais pobre. Só lhe resta o tesouro da lembrança.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

A PIPA

Era uma vez uma pipa de nome pomposo: Pipa Papagaio de Pandorga. Mas como era revoltada esta pipa! Era uma pipa feita por um menino que só tinha papel verde e, portanto, a pipa era verde. Mas ela não queria ser verde. Na verdade ela sempre queria as coisas diferentes do que eram. Um dia queria outra cor, outro dia outra forma, um vento mais forte ou mais fraco, mais sol ou menos sol, e por ai adiante. Mas era uma pipa jovem, acabara de ser feita pelo menino.
Num belo domingo de sol com vento moderadamente forte, o menino levou a pipa para fora, para a liberdade, para a vida. Como o vento estava firme e constante a pipa subiu alto, muito alto. Lá em cima ela descortinou toda a paisagem até muito longe e achou o mundo belo e cheio de delícias. Tanto cobiçou viver todas aquelas belezas e delícias que descuidou de fazer as cabriolas e volteios. Desde este dia a sua revolta se tornou mais específica: queria a liberdade. Imaginava quão alto podia subir e que velocidades podia alcançar se não estivesse presa. Queria porque queria que o fio que a prendia ao solo, e ao menino, arrebentasse, chegou mesmo a procurar as correntes de vento mais forte e a proximidade de fios com cerol de outras pipas. Achava a vida tão injusta que se revoltou contra a natureza e contra seu criador.
A pipa tanto desejou, tanto pediu mentalmente, que o menino por descuido não trocou a linha velha e, num dia de vento forte, a linha se partiu e lá foi ela levada pelo vento. Que felicidade! Estava livre afinal e podia iniciar sua jornada como desejasse. Mas. Logo percebeu que algo não ia bem, ela não podia controlar seus movimentos e o vento começou a fazer o que quisesse com ela. Nem mesmo estava subindo a alturas tão desejadas, estava caindo. Ela caiu vertiginosamente e cada vez mais apavorada e confusa: não era isto que imaginara ser a liberdade absoluta. Por fim caiu sobre uma árvore e parou, tendo adquirido alguns amassados e rasgões. Mesmo quando o menino veio resgatá-la, por que o menino sempre vai ao socorro de sua pipa, ela se sentiu solitária e desamparada.
Ela foi transportada para o quarto do menino e deixada num canto de uma prateleira para pensar e refletir sobre todas as coisas, aguardando uma mudança em sua situação. Num belo dia o menino entrou no quarto e cuidadosamente consertou a pipa que ficou com um remendo como cicatriz e lembrança do seu desatino. A partir desse dia retornou a sua esperança de um dia voar novamente, mas não da mesma forma de antes. Queria mais liberdade, maior altura de vôo, mas não tinha mais tanta certeza de poder conseguir e se conseguisse, como fazer para não se ferir novamente.
Num belo dia de início de outono, quando os ventos são melhores para soltar pipas, ela foi levada às alturas pelo menino. Ela estava temerosa e tímida frente ao vento e ficou apenas pairando sem coragem de fazer as acrobacias que costumava fazer. Ali solitária viu se aproximar uma pipa já velha e muito usada, com muitos remendos. Começaram a conversar e fizeram logo amizade. A pipa mais velha passou a narrar suas aventuras e contou que algumas vezes tinha subido tão alto que voltara úmida das gotas d’água das nuvens. A jovem ficou excitada e perguntou como isto era possível se ela estava presa à linha. A experiente pipa foi logo explicando: Quando aquele que me fez quer que eu voe alto ele escolhe um dia de vento forte, mas nestes dias há muito perigo que eu me perca ou me machuque, então ele escolhe uma linha mais forte para me prender. Também acontece nestes dias que eu passe a dar voltas rapidamente e se num momento estou subindo logo no outro estou descendo e assim fico sem direção e sem controle, então ele me coloca uma grande rabiola. Aprendi que o vento é inconstante e sem propósito e, por isso, é perigoso, passei a confiar no menino que conhece tudo sobre ventos e sabe o que quer para mim. Mas, o mais importante, sabe que meu maior desejo é cumprir o meu destino de voar alto e longe, ver o mundo lá de cima, e faz de tudo para que eu o cumpra. Portanto, se quisermos voar alto e longe precisamos que a linha seja mais forte e não mais fraca, precisamos ainda de uma rabiola maior para manter o controle nos fortes ventos das alturas. A linha forte imporá regras e limites que nos servem de âncora e suporte e a rabiola servirá para disciplinar o nosso vôo. Todas nós precisamos para voar de regras e disciplina. A jovem pipa finalmente aprendera a voar.
José Renato Delben
2006

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Lar doce lar

Havia muito tempo que morava naquela casa. Não se lembrava mais de quando chegara nela, mas até onde a memória o permitia lembrava-se de ter sempre morado ali. No princípio vivia correndo pela casa à procura das janelas e portas para ficar olhando para fora a observar o mundo que a rodeava. Não achava estranho o fato de nunca ter sido permitido a ele sair para o mundo lá fora, pois sempre vivera na casa de acordo com as regras dela e achava que todas as pessoas viviam do mesmo jeito. As pessoas que via nas outras casas vizinhas através das janelas de suas próprias casas eram muito reais, mas as que passeavam pela rua eram meio esquisitas, meio transparentes, meio sem vida. Eram fantasmas ou imagens virtuais, mas não eram reais, então achava que ninguém no mundo saia de suas casas, mas apenas os fantasmas delas. Havia tentado sair algumas vezes, mas se pusesse a cabeça para fora de uma janela que desse para o jardim imediatamente se via olhando para dentro de uma outra sala ou quarto e se desse um passo pela porta na direção da varanda acabava se encontrando num outro lugar da casa. Era natural deste jeito, o mundo era assim e aceitava. Vez ou outra deixava entrar um dos espectros que transitavam lá fora para conversar e brincar, mas era tão estranho conversar com um fantasma. Queria conversar com as pessoas que via através das janelas das casas vizinhas, mas elas não conseguiam sair de suas casas também.
Olhar o tempo todo pelas janelas acabou ficando meio tedioso com o passar do tempo e ele começou a prestar mais atenção às coisas da própria casa. Descobriu nisto uma aventura extraordinária. A casa era enorme! Com muitos quartos diferentes, salas de estar e de jogos, banheiros e cozinhas. Mas não tão grande que não pudesse ser percorrida num único dia, ainda mais ele sendo tão jovem e ligeiro. Mas como uma aventura extraordinária podia durar apenas um dia? Não podia! Sempre havia tantos armários para serem abertos, tantas gavetas, tantos esconderijos e detalhes que se explorasse cuidadosamente, como passou a fazer depois de certo tempo, um dia não bastava. E tantas coisas bonitas, tantas coisas horrendas, estranhas e variadas podiam ser encontradas! Ainda mais que a casa estava sempre mudando, algumas vezes rapidamente e outras lentamente. A cada despertar encontrava uma casa ligeiramente diferente: ou cores, ou decoração, ou móveis diferentes. Até mesmo em algumas épocas cômodos surgiam ou desapareciam. Alguns anos se passaram nesta brincadeira alternada com as visitas às janelas e portas.
Tantas mudanças ocorreram na duração do tempo que começaram a ocorrer padrões que não eram senão variações ligeiras de algo que já acontecera. Não havia mais surpresas e a aventura deixou de existir, o tédio então começou a invadir os cômodos da casa. E com o tédio um sentimento de inutilidade e falta de propósito e, em seguida, a depressão. Passou a fazer suas explorações diárias como se fosse um autômato ou zumbi e por vezes nem da cama saía. Foi então que neste silêncio de desejos, de motivação de entusiasmo que começou a ouvir aquele barulhinho baixinho quase no limite da audição. Não dava para distinguir a natureza, o jeito, o ritmo da coisa. Era algo que a princípio o incomodava. Procurava então constantemente pela casa a origem daquilo para fazer cessar. Colocava os ouvidos em todas as paredes, portas e móveis, mas nunca achava. Talvez por procurar incessantemente, por vontade sua ou da casa, os sons começaram a ficar mais fortes e audíveis e passou a distingui-los. Ás vezes eram gritos de raiva, medo ou alegria, outras vezes trechos de conversas desconexas, canções cantadas ou assobiadas. Mas nunca achava a origem dos sons. De qualquer forma ainda era um zumbido fraco que raramente se manifestava como som inteligível. A partir de então passou a estar sempre alerta em busca de mais aqueles “fantasmas” da casa, sempre à espera de descobrir algum segredo. Mas estar atento à própria casa tem seu preço.
Um belo dia em sua peregrinação no seu próprio lar viu uma sombra, um vulto, um movimento. Quando dirigiu o olhar nada havia lá. Ilusão de óptica pensou. Estou ficando impressionado com a imensa riqueza de sensações que meu lar me proporciona. Mas parecia que a casa respirava sensações, e ilusões. Passou a seguir vultos para perdê-los na virada de um corredor. Não conseguia ter uma visão clara, sempre na periferia da visão. Quando se voltava sumia. Certa vez quando entrou em uma biblioteca viu um senhor sentado na escrivaninha de costas para ele e escrevendo algo e quando foi indagar quem era ele sumiu. Tinha sido a visão mais clara até então e ele quase entrou em estado de choque. A partir deste dia as aparições forem ficando mais freqüentes e mais claras e passou a segui-las até sumirem. Nunca consegui a ver seus rostos, pois apareciam sempre de costas e se afastando.
Segui-las virou uma obsessão e do acordar ao adormecer as seguia procurando identificá-las. Umas pareciam velhas, outras muito jovens, umas pareciam muito felizes e outras infelizes, algumas bravas outras pacíficas. Uma infinidade de estados mentais e aparências podiam ser percebidas pelo andar e pelas conversas, gritos, assobios, canções que apresentavam. A casa passou então a ficar cheia. Apareciam duas, três ou mais ao mesmo tempo e ele ficava indeciso a respeito de qual seguir. Apareciam isoladamente e apresentando estados diferentes deixando a casa numa confusão e balburdia. Começou a andar pela casa sem rumo porque não precisava mais segui-las, elas apareciam por todo canto. Mas nunca um rosto, nem sequer um canto dele. E ele começou a ficar irritado gritando para que elas parassem, mas não era ouvido. Um dia já desanimado ia seguindo absorto em seus pensamentos por um corredor que virava à direita logo à frente e, sem aviso, surge uma aparição na sua direção vindo do outro lado da curva do corredor. Ele encarou-a e de medo e espanto quase perde os sentidos tendo que se apoiar na parede se deixando escorregar até ficar sentado no chão. Era ele que vinha em sua direção, um outro ele para falar a verdade. Ele com uma aparência diferente, um pouco mais velho, com roupas mais sóbrias e murmurando filosofias para si mesmo. Definitivamente era outro ele. Correu para o seu quarto e se escondeu por dias, pois estava preparado para um monte de coisas, mas não para aquilo. Passou a ter medo de encontrar de frente as outras aparições e encará-las. Por fim tomou coragem porque afinal a casa era sua e não a cederia para aparições quaisquer, saiu para os corredores e salas.
No começo foi sempre um enorme choque encontrar outros ele tão diversos dele em postura física e personalidade, mas foi se acostumando. Encontrou um ele bronco e mal educado sempre brigando, outro ele muito alegre e burro, outro ainda até meio efeminado e muitos outros de todos os jeitos. Havia uma infinidade dele em variedade. Mas nenhum dava a mínima para ele, o real, o dono da casa. E ele resolveu que tinha que por ordem para poder ter um pouco da privacidade, ao menos, que perdera nos últimos tempos. Se quisessem aparecer que fosse com hora marcada e preferencialmente por convite dele mesmo. Mas nenhum deles o ouvia. Ele tentava conversar, tentava segurar, tentava barrar o caminho, tentava de tudo, mas passavam por ele como se não existisse. Esperou então por uma das mudanças da casa para um estado que permitisse a comunicação com as aparições. E um dia aconteceu. Encontrou um ele rapaz alegre e contente em uma roupa esportiva andando como se fosse o dono do mundo que subitamente o viu deu um grito de susto e saiu correndo. Fui visto ao menos, pensou. Por muitos dias este ficou sumido, mas outros passaram a vê-lo e em maior ou menor grau tinham a mesma reação. Certa vez viu duas aparições indo uma ao encontro da outra e quando se viram ambas saíram correndo cada um para o seu lado. Então elas podiam se ver também? Que loucura! Logo o susto coletivo começou a passar e elas passaram a se cumprimentar e a ele também, mas faltava coragem a todos eles para começarem uma conversa. Coisa que devagarzinho começou a acontecer. Ele mesmo começou a gostar muito de conversar consigo mesmo, nas suas diversas versões. Com alguns dele a conversa era muito fácil e prazerosa, outros eram muito chatos e nem mesmo ele agüentava ele mesmo nestas ocasiões. Uma vez uns seis dele se encontraram na biblioteca e começaram a discutir algo muito importante, política ou religião, acho. E a discussão esquentou e uns se aliaram contra outros e a discussão acabou virando questão de honra. Nesta hora começaram a acontecer coisas estranhas. Aliados ferrenhos de uma facção iam se aproximando, se encostando e acabavam se fundindo em um só e acabada a discussão se separavam de novo. Eles não percebiam o que tinham feito e a maioria dos presentes também não.
Com o passar do tempo ele foi conhecendo cada um dos outros ele e se tronando íntimo de inúmeros. Um em particular lhe era agradável o convívio. Ele era alegre e espirituoso e nunca perdia a ocasião de fazer uma piada, mas era bom companheiro mesmo quando exagerava. Tinha conversa fácil e por isto vivia conversando com ele e se tornaram companheiros inseparáveis. Acostumou-se com o estado das coisas e até sentia prazer nisto uma vez que nunca mais estivera só. E tudo corria bem. Estava grato pela companhia de todas aquelas aparições, mesmo que não fossem reais de verdade, mas imagens de si mesmo. De tal forma aceitou que havia há muito decidido não expulsar aqueles intrusos. Mas, certa noite resolveram fazer uma confraternização no salão de festas que havia surgido no centro da casa, além de inúmeros quartos que abrigavam muitos dos dele que faziam da casa residência semi-permanente. A festa estava sendo um sucesso e havia inúmeros grupos que se associavam e dissociavam constantemente e, portanto, sempre havia determinados grupos que agradavam a cada um deles. Em determinado momento em que todos já tinham comido demais e bebido mais ainda este seu amigo mais chegado pediu atenção a todos para propor um brinde que foi assim:

˗ “Desde que me lembro morei nesta minha casa e fui solitário até que cada um de vocês foi aparecendo. Sou mais grato ainda pelo aparecimento do meu melhor amigo, mesmo tendo sido um dos últimos a surgir na minha casa. Um viva a todos vocês.”

Ele quase morreu de susto com esta declaração, isto não podia ser. Notou o espanto geral nos seus diversos dele e percebeu que todos pensavam ser os ocupantes originais da casa e os demais os espectros visitantes, inclusive ele sendo um destes para eles. Ficou suspenso entre sentimentos de espanto, incredulidade, horror e medo. Se todos eram originais então todos eram fantasmas igualmente. Seria algum deles real e inteiro? Aquela casa em que vivia era real? Alguma coisa qualquer era real? Enquanto seu mundo conceitual ruía sentiu o pavor de ir se desvanecendo e sendo absorvido junto com todos, uns aos outros, e soube que estava morrendo.
José Renato J. Delben
07/01/2009

domingo, 15 de fevereiro de 2009

O ESPELHO


Na idade áurea de minha vida, na qual minha atenção era constantemente voltada para as belas partes das mulheres que passavam por mim, não tinha muito que fazer depois da escola, a não ser observar os passantes. As brincadeiras da infância já não me tomavam o tempo. Sonhava com as brincadeiras dos adultos, mas estas ainda estavam fora do meu alcance. Gostava então de observar os comportamentos cheios de particularidades próprios de cada conhecido ou desconhecido que passava pela rua de minha casa. Este hábito se generalizou para qualquer lugar que ia.
Poucas pessoas que observei com mais freqüência ficaram na minha memória, mas uma permaneceu fortemente. Havia um senhor jovem ainda que me chamava a atenção pelo seu comportamento estranho. Em todo o lugar que passava e que havia uma superfície minimamente refletora ele diminuía o passo, olhava para seu reflexo e passava a mão no cabelo. Não importa quantas superfícies refletoras encontrasse mesmo em um trecho curto da rua, ele repetia o processo em todas. Achava tão estranho porque basta um espelho de vez em quando para se ajeitar. Só mais tarde conheci o que significavam comportamentos compulsivos.
Como morei na mesma casa em que cresci por mais umas duas décadas sempre o via na medida em que envelhecíamos. Depois de certo tempo ele piorou. Começou a voltar para se observar de novo mais e mais vezes em cada espelho e imaginei que transtorno isto não causava na sua vida pessoal e profissional. Como lhe sobraria tempo para viver se estava tão obcecado por sua imagem? Acabei ficando tão curioso que planejei perguntar diretamente a ele algum dia. Passei a cumprimentá-lo:
“– Bom dia!
– Boa Tarde!”
Passado algum tempo quando ele me retornou um sorriso, passei a perguntar pequenas amenidades sociais:
– Tempo bom, não!?
– Será que chove hoje?
Levou algum tempo para começarmos a ter pequenas conversa, já que era muito tímido. No entanto, o que queria conversar com ele exigia a intimidade de grandes amigos e tinha que esperar até que a amizade se desenvolvesse.
Nestes anos de espera ele continuou piorando e começou a tocar os espelhos e apertá-los. Para que?! Que esperava obter pressionando-os? E ele não teve sorte. Certo dia começaram a reforma de uma lojinha para a instalação de uma loja moderna, daqueles com grandes superfícies de vidro e muitos espelhos que refletiam a pessoa inteira. Nunca o vi tão feliz como quando a loja foi inaugurada. Mas os proprietários e funcionários não. Ele manchava com os dedos a superfície brilhante da vitrine várias vezes ao dia e um funcionário tinha sair para limpar tudo. Mas, cidade pequena, gente generosa, nunca o incomodaram. Até que um dia começou a se esfregar de corpo inteiro na superfície semi-espelhada. Ai não teve jeito, brigaram com ele constantemente até que parasse com aquilo. Mas ele passou a sair todas as noites para realizar a sua compulsão. Trocou o dia pela noite.
Nesta época nós já éramos amigos e um dia tomei coragem e conversei com ele a respeito. Perguntei como tinha começado aquilo e se foi a vaidade que o motivara de início. Disse-me que não. Sempre o intrigara até onde podia se lembrar o desaparecimento da sua imagem quando se afastava do espelho. Na infância, numa época que não possuía ainda capacidade de abstração desenvolvida, revoltara-se contra isto e começou a imaginar que a imagem deveria permanecer mesmo que ele se fosse para longe do espelho. Já adulto soube que isto era um absurdo, mas passou a não controlar os impulsos da infância e verificava constantemente se a imagem se iria com ele, No começo disfarçava penteando o cabelo ou ajeitando uma peça de roupa, mas depois não. Começou a tentar “pregar” a imagem com os dedos no espelho e os fracassos tinham o resultado inverso do que se podia esperar da verificação experimental, ele passou a tentar mais e mais fortemente até que passou a pressionar e esfregar o corpo inteiro no espelho. Ia começar a explicar a impossibilidade do que desejava usando as leis da óptica física e geométrica e que a única maneira da imagem permanecer, ou continuar sendo vista por ele, era se afastar sempre de frente para o espelho e mesmo assim iria ficando cada vez menor à medida que se afastava até se tornar um ponto infinitesimal frente à magnitude do universo, mas desisti. De que adiantaria a lógica do conhecimento se ele já o possuía. O comportamento era patológico e havia um sério desequilíbrio mental ao achar possível aquilo.
Não muito tempo depois sai da casa dos meus pais e fui morar em outro bairro ficando alguns anos sem vê-lo. Um dia, voltando para casa em visita, fui procurá-lo e seus filhos me informaram que falecera repentinamente de um ataque cardíaco quando vândalos atiraram um tijolo na vitrina da loja. Fiquei chocado com a gravidade que tinha alcançado a sua obsessão: morrer pela perda de um objeto de adoração. Penso constantemente nele e na sua obsessão desde então. De uns tempos para cá estou começando a ficar preocupado comigo mesmo. Outro dia passei a tocar em alguns espelhos que encontro no caminho.
José Renato J. Delben
janeiro/2009

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

SARÇA

אֶהְיֶה
Espinhos, aridez.
Solidão que é.
É o que é.
Eterno ardor

אהיה אשר אהיה
Casa agreste
Acácia divina
Fria no fogo
Arde no mundo

אל
Acima, acima
Por todos os lados
Profundezas
plenitude

José Renato 12/02/2009

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

LOBO MAU


Herbert fora o sétimo filhote macho a sair da barriga de sua mãe, Canis. Seu pai, Lúpus, ficou muito feliz, se bem que uma pequena preocupação o incomodava. Ele não era muito estudado e acreditava em muitas superstições. Diziam nas reuniões com os amigos, quando paravam para uivar para a lua nas noites de lua cheia, que o sétimo filho macho a nascer podia virar homislobo. Como isto era besteira resolveu esquecer a bobagem e agradecer à Natureza a bela ninhada da qual era pai.
Herbert cresceu sempre alegre e brincalhão como só o são os filhotes de lobo. Se bem que sempre fora bastante egoísta, queria tudo para si e na mesma hora. Já quando pequeno brigava para mamar em mais de uma teta da sua mãe tentando impedir que algum dos irmãos também recebesse aquela dádiva bondosa. À medida que crescia passou a buscar satisfação exagerada em tudo que fazia: queria ir mais longe quando a mãe pedia que andasse por perto, queria comer mais que a sua porção da caça trazida pelos pais quando sabia que tinha que dividir com os irmãos e gostava de brincadeiras mais brutas quando os pais haviam imposto limites. E assim o tempo foi passando. E Herbert foi ficando cada vez mais diferente de seus irmãos.
Quando chegou à adolescência ele parou de andar com o bando nas noites de lua cheia para uivar e celebrar a beleza da noite e reafirmar a unidade do bando. Ninguém sabia para onde ia, ficava dias fora e, após voltar, passava alguns dias esquisitão. Por esta época os outros lobos passaram a chamá-lo de lobo mau. Ele havia posto a alcatéia de lado e, lentamente a alcatéia o colocou de lado também: não havia o que fazer para re-inseri-lo na comunidade dos lobos bons.
Herbert nem mais saia para caçar os deliciosos cervos, porcos e outros bichinhos da vizinhança. Quando a alcatéia saía para caçar paravam a caçada assim que obtinham o suficiente para saciar a fome de todos. Ninguém sentia prazer em caçar, a não ser pela velocidade e pelo vento, mas satisfação e gratidão pela generosidade da natureza. Já Herbert parecia sentir prazer em abater o maior número de animais, como se fosse uma competição. Começou então a ser comentado, principalmente pelas lobas mais velhas, que ele era um homislobo que se transformava no período de lua cheia. Lupicínio, um jovem lobinho muito curioso ouviu uma destas conversas quando duas fêmeas conversavam sem perceber que ele estava por perto. Este não era um assunto a ser tratado com os mais jovens.
Lupicínio então passou a observar Herbert mais de perto procurando perceber o que é que o tornava um Homislobo. A não ser as esquisitices que todos já conheciam ele não viu nada demais, até que chegou a lua cheia. Herbert desapareceu e só voltou na lua minguante. Voltou mais gordo e com papadas debaixo dos olhos. Lupicínio ficou ainda mais curioso e se determinou a não perder Herbert de vista na próxima lua cheia, mas para sua frustração, isto acabou por acontecer de novo muitas vezes. Mas a cada vez aprendia um pouco mais sobre os hábitos de Herbert e, como acontece com todos os lobos, crescia e aprendia os métodos de caça rapidamente: ficou hábil nos métodos de espreita e perseguição. Numa noite de início do período de lua cheia pode seguir Herbert.
Lupicínio viu Herbert se afastar sorrateiramente da alcatéia logo que a noite caiu. Muito cauteloso Herbert parou várias vezes para verificar se não o seguiam, mas Lupicínio estava mais cauteloso ainda e conseguiu seguí-lo até uma clareira na qual chegaram momentos antes da lua cheia despontar no horizonte. Naquele lugar Lupicínio viu algo que pensou ser a coisa mais horripilante que podia existir, o que logo perceberia estar errado. Herbert entre espasmos de dor e prazer se transformou na criatura mais cruel e insensível com a natureza e com as criaturas: num homem. Lupicínio sentiu enorme pena de Herbert, e um quê de revolta. Não poderia haver destino mais cruel para um lobo. Herbert seguiu por uma trilha aberta pelos homens de uma aldeia próxima até chegar a uma suja toca de homens um pouco distante do lugar em que os homens viviam. Lá ele se cobriu com o que Lupicínio pensava ser a pele dos homens e seguiu para o lugar dos homens.
Nos dias que se seguiram Lupicínio pode entender o horror com o qual os mais velhos falavam dos homislobos. Viu Herbert participar de reuniões ruidosas, briguentas, nas quais se comia além do necessário e bebia-se um líquido que o tornava insano e cruel. Seguiram-se dias de matanças que era o modo de caçar dos homens. O horror máximo de Lupicínio foi presenciar Herbert participar de uma caçada aos próprios irmãos lobos. Percebeu que os homens, diferente dos lobos, não respeitavam a natureza nem a si mesmos e que as suas maneiras ruidosas, inquietas e muitas vezes cruéis eram formas de mascararem a dor de serem homens. Lupicínio, deste dia em diante, ficou mais triste, embora satisfeito e em paz por ser um lobo e não um animal tão selvagem como um homem.
José Renato Delben

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

ESCONSO

Pensamentos pipocas,
Espocam acaso,
Razão fiandeira,
Esteira de idéias,
Artifício, mentira.

Emoções irrompem
Gatilhos ignotos
Leis? Reis? Não!
Desordem será?
Esconderijos

Verdades...perigos,
Ausências eternas,
Cofres lacrados,
Armas cruéis.
Espreita.
José Renato 09/02/2009

MERDA

Da morte pútrida das coisas em mim nascem belíssimas flores.
Das belíssimas flores em mim nascem mortes putrefatas.
Tudo é morte e odores fétidos de fertilidade.
Tudo é nascimento e suaves olores de findar.
Morte, nascimento, morte, nascimento...
Tudo é tudo e nada é qualquer coisa.
José Renato 09/02/2009