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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Lar doce lar

Havia muito tempo que morava naquela casa. Não se lembrava mais de quando chegara nela, mas até onde a memória o permitia lembrava-se de ter sempre morado ali. No princípio vivia correndo pela casa à procura das janelas e portas para ficar olhando para fora a observar o mundo que a rodeava. Não achava estranho o fato de nunca ter sido permitido a ele sair para o mundo lá fora, pois sempre vivera na casa de acordo com as regras dela e achava que todas as pessoas viviam do mesmo jeito. As pessoas que via nas outras casas vizinhas através das janelas de suas próprias casas eram muito reais, mas as que passeavam pela rua eram meio esquisitas, meio transparentes, meio sem vida. Eram fantasmas ou imagens virtuais, mas não eram reais, então achava que ninguém no mundo saia de suas casas, mas apenas os fantasmas delas. Havia tentado sair algumas vezes, mas se pusesse a cabeça para fora de uma janela que desse para o jardim imediatamente se via olhando para dentro de uma outra sala ou quarto e se desse um passo pela porta na direção da varanda acabava se encontrando num outro lugar da casa. Era natural deste jeito, o mundo era assim e aceitava. Vez ou outra deixava entrar um dos espectros que transitavam lá fora para conversar e brincar, mas era tão estranho conversar com um fantasma. Queria conversar com as pessoas que via através das janelas das casas vizinhas, mas elas não conseguiam sair de suas casas também.
Olhar o tempo todo pelas janelas acabou ficando meio tedioso com o passar do tempo e ele começou a prestar mais atenção às coisas da própria casa. Descobriu nisto uma aventura extraordinária. A casa era enorme! Com muitos quartos diferentes, salas de estar e de jogos, banheiros e cozinhas. Mas não tão grande que não pudesse ser percorrida num único dia, ainda mais ele sendo tão jovem e ligeiro. Mas como uma aventura extraordinária podia durar apenas um dia? Não podia! Sempre havia tantos armários para serem abertos, tantas gavetas, tantos esconderijos e detalhes que se explorasse cuidadosamente, como passou a fazer depois de certo tempo, um dia não bastava. E tantas coisas bonitas, tantas coisas horrendas, estranhas e variadas podiam ser encontradas! Ainda mais que a casa estava sempre mudando, algumas vezes rapidamente e outras lentamente. A cada despertar encontrava uma casa ligeiramente diferente: ou cores, ou decoração, ou móveis diferentes. Até mesmo em algumas épocas cômodos surgiam ou desapareciam. Alguns anos se passaram nesta brincadeira alternada com as visitas às janelas e portas.
Tantas mudanças ocorreram na duração do tempo que começaram a ocorrer padrões que não eram senão variações ligeiras de algo que já acontecera. Não havia mais surpresas e a aventura deixou de existir, o tédio então começou a invadir os cômodos da casa. E com o tédio um sentimento de inutilidade e falta de propósito e, em seguida, a depressão. Passou a fazer suas explorações diárias como se fosse um autômato ou zumbi e por vezes nem da cama saía. Foi então que neste silêncio de desejos, de motivação de entusiasmo que começou a ouvir aquele barulhinho baixinho quase no limite da audição. Não dava para distinguir a natureza, o jeito, o ritmo da coisa. Era algo que a princípio o incomodava. Procurava então constantemente pela casa a origem daquilo para fazer cessar. Colocava os ouvidos em todas as paredes, portas e móveis, mas nunca achava. Talvez por procurar incessantemente, por vontade sua ou da casa, os sons começaram a ficar mais fortes e audíveis e passou a distingui-los. Ás vezes eram gritos de raiva, medo ou alegria, outras vezes trechos de conversas desconexas, canções cantadas ou assobiadas. Mas nunca achava a origem dos sons. De qualquer forma ainda era um zumbido fraco que raramente se manifestava como som inteligível. A partir de então passou a estar sempre alerta em busca de mais aqueles “fantasmas” da casa, sempre à espera de descobrir algum segredo. Mas estar atento à própria casa tem seu preço.
Um belo dia em sua peregrinação no seu próprio lar viu uma sombra, um vulto, um movimento. Quando dirigiu o olhar nada havia lá. Ilusão de óptica pensou. Estou ficando impressionado com a imensa riqueza de sensações que meu lar me proporciona. Mas parecia que a casa respirava sensações, e ilusões. Passou a seguir vultos para perdê-los na virada de um corredor. Não conseguia ter uma visão clara, sempre na periferia da visão. Quando se voltava sumia. Certa vez quando entrou em uma biblioteca viu um senhor sentado na escrivaninha de costas para ele e escrevendo algo e quando foi indagar quem era ele sumiu. Tinha sido a visão mais clara até então e ele quase entrou em estado de choque. A partir deste dia as aparições forem ficando mais freqüentes e mais claras e passou a segui-las até sumirem. Nunca consegui a ver seus rostos, pois apareciam sempre de costas e se afastando.
Segui-las virou uma obsessão e do acordar ao adormecer as seguia procurando identificá-las. Umas pareciam velhas, outras muito jovens, umas pareciam muito felizes e outras infelizes, algumas bravas outras pacíficas. Uma infinidade de estados mentais e aparências podiam ser percebidas pelo andar e pelas conversas, gritos, assobios, canções que apresentavam. A casa passou então a ficar cheia. Apareciam duas, três ou mais ao mesmo tempo e ele ficava indeciso a respeito de qual seguir. Apareciam isoladamente e apresentando estados diferentes deixando a casa numa confusão e balburdia. Começou a andar pela casa sem rumo porque não precisava mais segui-las, elas apareciam por todo canto. Mas nunca um rosto, nem sequer um canto dele. E ele começou a ficar irritado gritando para que elas parassem, mas não era ouvido. Um dia já desanimado ia seguindo absorto em seus pensamentos por um corredor que virava à direita logo à frente e, sem aviso, surge uma aparição na sua direção vindo do outro lado da curva do corredor. Ele encarou-a e de medo e espanto quase perde os sentidos tendo que se apoiar na parede se deixando escorregar até ficar sentado no chão. Era ele que vinha em sua direção, um outro ele para falar a verdade. Ele com uma aparência diferente, um pouco mais velho, com roupas mais sóbrias e murmurando filosofias para si mesmo. Definitivamente era outro ele. Correu para o seu quarto e se escondeu por dias, pois estava preparado para um monte de coisas, mas não para aquilo. Passou a ter medo de encontrar de frente as outras aparições e encará-las. Por fim tomou coragem porque afinal a casa era sua e não a cederia para aparições quaisquer, saiu para os corredores e salas.
No começo foi sempre um enorme choque encontrar outros ele tão diversos dele em postura física e personalidade, mas foi se acostumando. Encontrou um ele bronco e mal educado sempre brigando, outro ele muito alegre e burro, outro ainda até meio efeminado e muitos outros de todos os jeitos. Havia uma infinidade dele em variedade. Mas nenhum dava a mínima para ele, o real, o dono da casa. E ele resolveu que tinha que por ordem para poder ter um pouco da privacidade, ao menos, que perdera nos últimos tempos. Se quisessem aparecer que fosse com hora marcada e preferencialmente por convite dele mesmo. Mas nenhum deles o ouvia. Ele tentava conversar, tentava segurar, tentava barrar o caminho, tentava de tudo, mas passavam por ele como se não existisse. Esperou então por uma das mudanças da casa para um estado que permitisse a comunicação com as aparições. E um dia aconteceu. Encontrou um ele rapaz alegre e contente em uma roupa esportiva andando como se fosse o dono do mundo que subitamente o viu deu um grito de susto e saiu correndo. Fui visto ao menos, pensou. Por muitos dias este ficou sumido, mas outros passaram a vê-lo e em maior ou menor grau tinham a mesma reação. Certa vez viu duas aparições indo uma ao encontro da outra e quando se viram ambas saíram correndo cada um para o seu lado. Então elas podiam se ver também? Que loucura! Logo o susto coletivo começou a passar e elas passaram a se cumprimentar e a ele também, mas faltava coragem a todos eles para começarem uma conversa. Coisa que devagarzinho começou a acontecer. Ele mesmo começou a gostar muito de conversar consigo mesmo, nas suas diversas versões. Com alguns dele a conversa era muito fácil e prazerosa, outros eram muito chatos e nem mesmo ele agüentava ele mesmo nestas ocasiões. Uma vez uns seis dele se encontraram na biblioteca e começaram a discutir algo muito importante, política ou religião, acho. E a discussão esquentou e uns se aliaram contra outros e a discussão acabou virando questão de honra. Nesta hora começaram a acontecer coisas estranhas. Aliados ferrenhos de uma facção iam se aproximando, se encostando e acabavam se fundindo em um só e acabada a discussão se separavam de novo. Eles não percebiam o que tinham feito e a maioria dos presentes também não.
Com o passar do tempo ele foi conhecendo cada um dos outros ele e se tronando íntimo de inúmeros. Um em particular lhe era agradável o convívio. Ele era alegre e espirituoso e nunca perdia a ocasião de fazer uma piada, mas era bom companheiro mesmo quando exagerava. Tinha conversa fácil e por isto vivia conversando com ele e se tornaram companheiros inseparáveis. Acostumou-se com o estado das coisas e até sentia prazer nisto uma vez que nunca mais estivera só. E tudo corria bem. Estava grato pela companhia de todas aquelas aparições, mesmo que não fossem reais de verdade, mas imagens de si mesmo. De tal forma aceitou que havia há muito decidido não expulsar aqueles intrusos. Mas, certa noite resolveram fazer uma confraternização no salão de festas que havia surgido no centro da casa, além de inúmeros quartos que abrigavam muitos dos dele que faziam da casa residência semi-permanente. A festa estava sendo um sucesso e havia inúmeros grupos que se associavam e dissociavam constantemente e, portanto, sempre havia determinados grupos que agradavam a cada um deles. Em determinado momento em que todos já tinham comido demais e bebido mais ainda este seu amigo mais chegado pediu atenção a todos para propor um brinde que foi assim:

˗ “Desde que me lembro morei nesta minha casa e fui solitário até que cada um de vocês foi aparecendo. Sou mais grato ainda pelo aparecimento do meu melhor amigo, mesmo tendo sido um dos últimos a surgir na minha casa. Um viva a todos vocês.”

Ele quase morreu de susto com esta declaração, isto não podia ser. Notou o espanto geral nos seus diversos dele e percebeu que todos pensavam ser os ocupantes originais da casa e os demais os espectros visitantes, inclusive ele sendo um destes para eles. Ficou suspenso entre sentimentos de espanto, incredulidade, horror e medo. Se todos eram originais então todos eram fantasmas igualmente. Seria algum deles real e inteiro? Aquela casa em que vivia era real? Alguma coisa qualquer era real? Enquanto seu mundo conceitual ruía sentiu o pavor de ir se desvanecendo e sendo absorvido junto com todos, uns aos outros, e soube que estava morrendo.
José Renato J. Delben
07/01/2009

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