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domingo, 15 de fevereiro de 2009

O ESPELHO


Na idade áurea de minha vida, na qual minha atenção era constantemente voltada para as belas partes das mulheres que passavam por mim, não tinha muito que fazer depois da escola, a não ser observar os passantes. As brincadeiras da infância já não me tomavam o tempo. Sonhava com as brincadeiras dos adultos, mas estas ainda estavam fora do meu alcance. Gostava então de observar os comportamentos cheios de particularidades próprios de cada conhecido ou desconhecido que passava pela rua de minha casa. Este hábito se generalizou para qualquer lugar que ia.
Poucas pessoas que observei com mais freqüência ficaram na minha memória, mas uma permaneceu fortemente. Havia um senhor jovem ainda que me chamava a atenção pelo seu comportamento estranho. Em todo o lugar que passava e que havia uma superfície minimamente refletora ele diminuía o passo, olhava para seu reflexo e passava a mão no cabelo. Não importa quantas superfícies refletoras encontrasse mesmo em um trecho curto da rua, ele repetia o processo em todas. Achava tão estranho porque basta um espelho de vez em quando para se ajeitar. Só mais tarde conheci o que significavam comportamentos compulsivos.
Como morei na mesma casa em que cresci por mais umas duas décadas sempre o via na medida em que envelhecíamos. Depois de certo tempo ele piorou. Começou a voltar para se observar de novo mais e mais vezes em cada espelho e imaginei que transtorno isto não causava na sua vida pessoal e profissional. Como lhe sobraria tempo para viver se estava tão obcecado por sua imagem? Acabei ficando tão curioso que planejei perguntar diretamente a ele algum dia. Passei a cumprimentá-lo:
“– Bom dia!
– Boa Tarde!”
Passado algum tempo quando ele me retornou um sorriso, passei a perguntar pequenas amenidades sociais:
– Tempo bom, não!?
– Será que chove hoje?
Levou algum tempo para começarmos a ter pequenas conversa, já que era muito tímido. No entanto, o que queria conversar com ele exigia a intimidade de grandes amigos e tinha que esperar até que a amizade se desenvolvesse.
Nestes anos de espera ele continuou piorando e começou a tocar os espelhos e apertá-los. Para que?! Que esperava obter pressionando-os? E ele não teve sorte. Certo dia começaram a reforma de uma lojinha para a instalação de uma loja moderna, daqueles com grandes superfícies de vidro e muitos espelhos que refletiam a pessoa inteira. Nunca o vi tão feliz como quando a loja foi inaugurada. Mas os proprietários e funcionários não. Ele manchava com os dedos a superfície brilhante da vitrine várias vezes ao dia e um funcionário tinha sair para limpar tudo. Mas, cidade pequena, gente generosa, nunca o incomodaram. Até que um dia começou a se esfregar de corpo inteiro na superfície semi-espelhada. Ai não teve jeito, brigaram com ele constantemente até que parasse com aquilo. Mas ele passou a sair todas as noites para realizar a sua compulsão. Trocou o dia pela noite.
Nesta época nós já éramos amigos e um dia tomei coragem e conversei com ele a respeito. Perguntei como tinha começado aquilo e se foi a vaidade que o motivara de início. Disse-me que não. Sempre o intrigara até onde podia se lembrar o desaparecimento da sua imagem quando se afastava do espelho. Na infância, numa época que não possuía ainda capacidade de abstração desenvolvida, revoltara-se contra isto e começou a imaginar que a imagem deveria permanecer mesmo que ele se fosse para longe do espelho. Já adulto soube que isto era um absurdo, mas passou a não controlar os impulsos da infância e verificava constantemente se a imagem se iria com ele, No começo disfarçava penteando o cabelo ou ajeitando uma peça de roupa, mas depois não. Começou a tentar “pregar” a imagem com os dedos no espelho e os fracassos tinham o resultado inverso do que se podia esperar da verificação experimental, ele passou a tentar mais e mais fortemente até que passou a pressionar e esfregar o corpo inteiro no espelho. Ia começar a explicar a impossibilidade do que desejava usando as leis da óptica física e geométrica e que a única maneira da imagem permanecer, ou continuar sendo vista por ele, era se afastar sempre de frente para o espelho e mesmo assim iria ficando cada vez menor à medida que se afastava até se tornar um ponto infinitesimal frente à magnitude do universo, mas desisti. De que adiantaria a lógica do conhecimento se ele já o possuía. O comportamento era patológico e havia um sério desequilíbrio mental ao achar possível aquilo.
Não muito tempo depois sai da casa dos meus pais e fui morar em outro bairro ficando alguns anos sem vê-lo. Um dia, voltando para casa em visita, fui procurá-lo e seus filhos me informaram que falecera repentinamente de um ataque cardíaco quando vândalos atiraram um tijolo na vitrina da loja. Fiquei chocado com a gravidade que tinha alcançado a sua obsessão: morrer pela perda de um objeto de adoração. Penso constantemente nele e na sua obsessão desde então. De uns tempos para cá estou começando a ficar preocupado comigo mesmo. Outro dia passei a tocar em alguns espelhos que encontro no caminho.
José Renato J. Delben
janeiro/2009

Um comentário:

  1. Zé eu acho que tu ta ficando velho mano?
    tu devias ler "memórias de minhas putas triste" do Gabriel Garcia Marques. um abraço Cledemar.
    visite: cledemar.blogspot.com

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