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Este deverá ser um espaço onde amigos compartilhem suas criações e as discutam. Se desejar entre em contato para discutirmos o desenvolvimento do blog e participações. delbenbr@hotmail.com

terça-feira, 31 de março de 2009

Tolo coração

A Saudade faceira provocou o juvenil coração para uma corrida através do tempo. Por não compreender o tempo e a Saudade, o tolo coração aceitou rapidamente sem saber que perderia se ganhasse, empatasse ou perdesse tal maligna corrida. De início a jovem Saudade partiu célere na frente e tomou distância. O jovem coração ficou vendo-a se distanciar imaginava como seria o caminho por onde estava passando a Saudade e fantasiava como seria bom o caminho do futuro. Sentiu então saudades do porvir sombreando o tempo presente. Mas o jovem coração se fortaleceu durante a corrida e foi alcançando a Saudade tornando presentes os tempos futuros por onde a Saudade passara. Quanto mais próximo chegava mais saudades sentia, mas agora, do tempo presente. O tempo presente não era o que imaginara e ele sentiu saudades do tempo presente que havia sonhado sombreando novamente o tempo presente. Como a Saudade foi envelhecendo, a ultrapassou num certo momento e ficou imaginando a Saudade percorrendo os caminhos por onde ele passara e a Saudade na distância coloria a paisagem do tempo passado e ele passou a sentir saudades do passado. E isto sombreou novamente o tempo presente. O tolo coração lamentava entre gemidos – Ai coração! Como sou tolo por nunca estar!
José Renato, 31/06/2009

domingo, 29 de março de 2009

EXATIDÃO

Matemática maravilhosa
um mais um mais que dois
um menos um maior que um.

Matéria fantástica
Do que se tira aumenta
O que se põe multiplica

Mágica etérea
A Música produz Silêncio
O silêncio ensurdece

Final enigma
A multiplicidade esvanece
A unidade preenche o universo


José Renato, 29/03/2009

quarta-feira, 25 de março de 2009

O Porcex


Durante um breve instante, pensei ter estado em uma viagem alucinógena. Parecia estar contente por ter feito amizade com um porco voador. Tudo estava fora de si. Eu estava fora de mim, o porco também estava fora de si. Tinha uma doninha - apesar de não saber o que é uma doninha - que também estava fora de si.
Não sei se o que vi era o porco em si, ou apenas o que estava fora do porco, pois o porco estava fora de si. Deveria ser o fora de si, pois, como não conheço doninhas, não podia ser uma doninha de verdade.
Esqueça a doninha, estávamos falando do fora de si do porco. Chamemo-lo de “Porco externo” ou “Porcex”. Como dizia, o Porcex estava impressionado com a notícia que acabara de ler: “EXTRA! EXTRA! Canibal vegetariano devora planta carnívora”.
“O que significa essa frase?” – indagou o porco. Parecia não fazer sentido. Apesar de que ela parecia ser real. Também não fazia mesmo sentido um porco ler uma notícia. Mas não esqueçamos de que era o Porcex.
Um porco externo possui algumas características, ou melhor, não possui algumas características: ele é privado de suas partes corpóreas, ou seja, não possui toucinho, nem paleta, nem pernil, nem costelinhas, nem orelhas e nem pés; os 4 pés. Porco tem mão? Bom, não importa, porque o Porcex não tem mão mesmo. Mas uma coisa muito boa mesmo dos porcex’s e que eles podem ler notícias. Ah! Eles também podem voar, já que era um porcex voador.
Mas tão logo pude pensar no significado da notícia, a viagem acabou e o Porcex sumiu, a doninha também.
Quando retornei para dentro de mim restaram algumas questões: O que significava aquela notícia? Por que o porco podia voar? E o que, diabos, é uma doninha?
Comecemos pelo o que é uma doninha? Doninha é um mamífero, carnívoro, da família dos mustelídeos e seu nome científico é Mustela nivalis. Ela é encontrada em toda a Europa e Ásia e norte da África. Ela pode ter de 20 a 42 cm de comprimento e pesar de 30 a 80g. Os dejetos têm pequenas dimensões e são geralmente compridos e retorcidos, sendo muitas vezes depositados em cima de muros de pedra ou sob a vegetação. Parece um furão, penso que são da mesma família.
Acredito que o significado da notícia está intimamente relacionado com o fato de que o porco podia voar. Veja bem, o Porcex era não-corpóreo, não tinha imagem, logo, não poderia vê-lo voando. Por outro lado, eu também era um ser não-corpóreo, portanto, não tinha olhos, logo.... bom, logo, não poderia ver. Porém era uma alucinação minha, não tinha a mínima intenção de fazer algum sentido lógico. E é aí que mora a relação com o significado da notícia.
Isso significa que estou ficando louco.


Luiz Felipe Plaça,
25/03/2009

quinta-feira, 19 de março de 2009

ZEN MOSQUITOS

Havia um homem com uma nuvem de mosquitos ao seu redor. Ele abanava as mãos insistentemente para espantá-los. Sem sucesso levava inúmeras picadas irritantes pelo corpo todo. Estava a uma eternidade neste trabalho de Sisifo. Num momento ele compreendeu e então não havia mais mãos, nem corpo e nem mosquitos.
José Renato, 19/03/2009

segunda-feira, 16 de março de 2009

A VIAGEM

Ele rezara por sabedoria, durante muitos anos assim o fizera. Muitos pediam dinheiro, saúde, mulheres e sucesso, ele também pedira a Deus todas estas coisas, mas apenas como acessórias. O que o incomodava era a profunda ignorância de todos os homens sobre todas as coisas. Muito mais tarde, quando estava prestes a entrar na adolescência, descobriu que o motivo de suas preces era o medo. Possuía um medo insano da morte, mas principalmente do depois da morte. Tinha medo da finitude e também da infinitude, do temporário e da eternidade e não sabia do que mais tinha medo, pois todas as opções lhe pareciam inadequadas. Leu, estudou e pensou muito, mas não chegava a arranhar o véu de mistério que ocultava todas as coisas.
Houve uma época que passou a orar a Deus para que este lhe enviasse um sinal de sua existência ou de não existência. A sua parte racional, até que não desprezível, não intervia para fazer cessar este pensamento absurdo. Como é que um Deus que não existia poderia enviar uma mensagem dizendo que não existia? Seu comportamento e seu pensar deixaram de ser equilibrados, se um dia já houvessem sido, para serem completamente emocionais.
Um dia, a bem da verdade uma noite, desesperado com a injustiça de possuir a faculdade de perceber a sua mortalidade e o seu tamanho relativo em face da infinitude do universo orou de maneira quase raivosa exigindo uma resposta. Isto era uma total insanidade. Adormeceu sem nenhuma esperança de obter respostas para suas perguntas, mas naquela noite teve um sonho.
Sonhou que estava escuro, daquela escuridão total que percebemos quando acordamos no meio da noite com todas as portas e janelas fechadas e não temos noção nem de em qual direção está a parede mais próxima. Estava completamente perdido e desorientado. Então sentiu que ao seu lado estava algo ou alguém com um propósito para ele e que o transmitia de forma não verbal. Ou seja, sem palavras, mas ambos sabiam a intenção e o propósito do outro. Foi então transportado vertiginosamente para outro lugar, lugar este não tão escuro quanto o anterior, mas acinzentado e com uma atmosfera que confundia sua percepção visual do seu entorno. Sabia apenas, ou pensou saber, que estava muito acima da superfície terrestre, pois parecia perceber a curvatura terrestre. Neste lugar, e então, pode expressar de maneira coordenada suas dúvidas, mas ainda de maneira não verbal. Novamente começou a se mover, desta feita de maneira vertiginosa, através de uma região nebulosa. Quando se diz nebulosa não quer dizer cheia de nuvens como usualmente são pensadas, mas num ambiente cheio de uma névoa que parecia originar-se principalmente de uma distorção ótica da atmosfera. O ambiente foi ficando cada vez mais claro até que se viu em uma região totalmente vazia do espaço e podia enxergar estrelas como se o céu noturno de uma noite muito límpida o envolvesse por todos os lados. Isto tudo se passou de maneira muito rápida. Finalmente percebeu que estava próximo de um sistema contendo três astros de mesmo tamanho orbitando esfericamente em torno de um centro comum, que poderiam ser estrelas, irradiando luz intensamente, mas esta luz não feria os olhos nem ofuscava a vista. Cada estrela era de cor diferente, mesmo a memória começando a falhar e não podendo mais jurar sobre isto, acreditava que as estrelas eram amarela, azul e rosa. A bem da verdade as cores não pareciam ter importância ou significado especial e a única relevância delas era serem muito relaxantes.
Em presença deste sistema trino de estrelas foi compelido a expressar novamente suas dúvidas e angústias. Passou então a receber ensinamentos agora verbais durante um tempo que não pode precisar, mas cujo conteúdo não era mais que os conceitos de amor e caridade sob diversas formas comuns às religiões terrestres. Então, de maneira bastante mal educada e bem ríspida da qual se envergonharia se o fizesse com outro ser humano, interrompeu o fluxo de conhecimentos. E disse, aproximadamente e de maneira um pouco mais ríspida do que se pode contar, que aquilo já estava careca de saber e que gostaria de saber se possuía alma que sobreviveria a sua morte física, e mais, como tudo morre, mesmo estrelas e galáxias, se sobreviveria à morte do universo. Neste momento fez-se um silencio bastante profundo, sua atenção foi dirigida para uma região do espaço em que uma massa de estrelas se expandiu subitamente e as estrelas na periferia simplesmente sumiram. Ele ouviu uma voz que dizia: nem mesmo eu sei se sobreviverei a isto.
Ele então sentiu uma calma e resignação muito grande e iniciou o percurso de volta numa velocidade tão vertiginosa quanto antes. Quando entrou na região de distorção visual olhou para trás para observar as três estrelas e não pode vê-las na sua forma original. Conforme mexia a cabeça procurando uma visão mais clara, via ora totens tribais, ora deuses hindus, deuses gregos, um ancião de barbas longas e brancas e inumeráveis outros deuses. Ficou extremamente surpreso e pensou então: são todas visões distorcidas de uma mesma realidade inatingível pelo intelecto humano. Em seguida acordou.
José Renato J. Delben 2005

domingo, 8 de março de 2009

Absurdos

Os dois amigos já estavam conversando ha algum tempo quando a conversa se tornou etérea.
Zé Renato - Voce ficou estranho de repente, o que foi?
Luiz Felipe - É que estive com os guardas da fronteira, além do limite do infinito.
Zé Renato -O infinito é um ponto, ponto final.
E pensando um pouco diz - Tudo é finito no infinito, também.
Luiz Felipe - A não ser o mito que o limita.
Zé Renato - Porque o mito é uma refração da Luz Absoluta na névoa da mente.
Ai o Luiz ficando mais parecido ainda com um daqueles quadros escorridos de Dali e com os olhos parecendo olhar cada um para um lado diz - Zé, é melhor a gente ir embora, acho que já bebemos demais.
E sairam pisando na calçada pavimentada com constelações. O diabo é que elas não ficavam paradas!

terça-feira, 3 de março de 2009

O TESOURO

Na casa de sua avó tinha um tesouro. Na verdade havia muitos tesouros, mas este foi o principal por muito tempo. Era um tesouro tão fascinante que não seria mais valioso se contivesse jóias e dinheiros. Mas como ele descobrira este tesouro e que fim levou?
Ele o descobriu porque ia muito à casa de sua avó e era xereta como qualquer criança, mexia em tudo o tempo todo. Nesta época, em sua tenra infância, gostava de ir lá especialmente no inverno porque na ampla cozinha de sua avó tinha um fogão à lenha com uma chapa de ferro enorme e um forno que sempre espantava o frio. Mas gostava sempre de ir lá porque o fogão era uma fonte inesgotável de coisas deliciosas. Num dia eram sonhos, no outro eram bolinhos de chuva, massas fritas de pastéis com açúcar e canela, pastéis de banana, cucas, pães de centeio e de milho e, enfim, uma variedade de outras coisas. Mesmo que não fossem feitos especial e necessariamente para ele, se estivesse lá aproveitaria. Ele lembra até hoje de algumas tardes em que sua avó o levava para o pátio de lenha e descascava laranjas e canas e fatiava melancias para ele. Aquelas frutas tinham um sabor especial, eram melhores e mais saborosas que as que ele mesmo descascava, tinham também um sabor de avó. Ah, não se pode esquecer que bolachas de natal dentre outras eram preparadas naquela cozinha.
Mas, e o tesouro? O tesouro estava numa gaveta da mesa da cozinha. Esta mesa era retangular e de uma simplicidade interiorana. O tampo era feito de tabuas justapostas lado a lado sem nenhum enfeite e do lado sob este tampo havia a gaveta. Na gaveta sua avó guardava os instrumentos especiais da cozinha: forminhas de empadinhas, cortador de massa de pastel, tesoura, formas de cortar bolachas em forma de bonecos, de bichos e estrelas e muito mais. Eram utensílios daqueles antigos, com consistência, peso, forma. Quanta mágica, fascinação e afeto havia naqueles objetos! Se sua avó saia da cozinha ou se virava lá ia ele mexer na gaveta e brincar. Aqueles objetos tão prosaicos, tão simples, eram bens preciosíssimos para ele. Nos momentos em que tocava neles sentia-se num mundo mágico, confortável, aconchegante e pacífico. O mundo brilhava e se tornava mais morno.
O que havia naqueles objetos para que fossem considerados tão preciosos? Ele não sabia explicar, nem tentava ou precisava. Para ele eram preciosos e ponto, acabou. Porque, mesmo que ele não soubesse então, eram os instrumentos mágicos de confecção de tantas delícias tais as varinhas mágicas das fadas e das bruxas boas. E estas delícias eram a expressão gulosa do amor de sua avó. Tudo naquela cozinha cheirava, coloria, brilhava e soava carinho e dedicação e, até mesmo, paciência necessária para aturar aqueles netos traquinas.
Com o tempo aquela coleção de bugigangas foi diminuindo, diminuindo, até restarem pouquíssimas peças. Algumas se desgastaram com o uso e outras foram perdidas pelos netos. No fim eles acabaram se tornando objetos comuns e perderam todo o encanto. Mas o tesouro foi crescendo com o tempo até ficar além de qualquer avaliação. As dádivas daquela casa foram se multiplicando enquanto ele crescia. Algumas vezes eram um refugio para leitura em paz e silêncio, outras vezes um café da tarde surrupiado, um ponto de partida para caçadas com amigos, ou o primeiro emprego arranjado por seu avô. Mas, sempre em todos os tempos a orientação espiritual da sua avó, um espírito muito sofrido, mas muito forte. No avô nunca houve uma palavra áspera para ele, mesmo quando freqüentemente tomava dele o estilingue que com tanta dificuldade era construído.
Ambos os avós eram espíritos muito fortes e nada neles era pequeno, qualidades ou defeitos, mas principalmente o amor. O amor nunca era negado ou rejeitado mesmo que fosse ofertado de maneira torta ou pouco merecido.
Quando já adulto ficou conhecendo a história de vida de seus avós e a tremenda luta pela redenção travada por eles e as enormes vitórias conseguidas mesmo que a guerra ainda estivesse longe de ser ganha. O tesouro dos exemplos de oportunidades perdidas, do não voltar do tempo e de que o que passou não pode mais ser mudado ou consertado.
Naquela casa havia um tesouro e este eram seus avós. Hoje eles estão procurando seus tesouros em outras realidades e o menino se sente muito mais pobre. Só lhe resta o tesouro da lembrança.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

A PIPA

Era uma vez uma pipa de nome pomposo: Pipa Papagaio de Pandorga. Mas como era revoltada esta pipa! Era uma pipa feita por um menino que só tinha papel verde e, portanto, a pipa era verde. Mas ela não queria ser verde. Na verdade ela sempre queria as coisas diferentes do que eram. Um dia queria outra cor, outro dia outra forma, um vento mais forte ou mais fraco, mais sol ou menos sol, e por ai adiante. Mas era uma pipa jovem, acabara de ser feita pelo menino.
Num belo domingo de sol com vento moderadamente forte, o menino levou a pipa para fora, para a liberdade, para a vida. Como o vento estava firme e constante a pipa subiu alto, muito alto. Lá em cima ela descortinou toda a paisagem até muito longe e achou o mundo belo e cheio de delícias. Tanto cobiçou viver todas aquelas belezas e delícias que descuidou de fazer as cabriolas e volteios. Desde este dia a sua revolta se tornou mais específica: queria a liberdade. Imaginava quão alto podia subir e que velocidades podia alcançar se não estivesse presa. Queria porque queria que o fio que a prendia ao solo, e ao menino, arrebentasse, chegou mesmo a procurar as correntes de vento mais forte e a proximidade de fios com cerol de outras pipas. Achava a vida tão injusta que se revoltou contra a natureza e contra seu criador.
A pipa tanto desejou, tanto pediu mentalmente, que o menino por descuido não trocou a linha velha e, num dia de vento forte, a linha se partiu e lá foi ela levada pelo vento. Que felicidade! Estava livre afinal e podia iniciar sua jornada como desejasse. Mas. Logo percebeu que algo não ia bem, ela não podia controlar seus movimentos e o vento começou a fazer o que quisesse com ela. Nem mesmo estava subindo a alturas tão desejadas, estava caindo. Ela caiu vertiginosamente e cada vez mais apavorada e confusa: não era isto que imaginara ser a liberdade absoluta. Por fim caiu sobre uma árvore e parou, tendo adquirido alguns amassados e rasgões. Mesmo quando o menino veio resgatá-la, por que o menino sempre vai ao socorro de sua pipa, ela se sentiu solitária e desamparada.
Ela foi transportada para o quarto do menino e deixada num canto de uma prateleira para pensar e refletir sobre todas as coisas, aguardando uma mudança em sua situação. Num belo dia o menino entrou no quarto e cuidadosamente consertou a pipa que ficou com um remendo como cicatriz e lembrança do seu desatino. A partir desse dia retornou a sua esperança de um dia voar novamente, mas não da mesma forma de antes. Queria mais liberdade, maior altura de vôo, mas não tinha mais tanta certeza de poder conseguir e se conseguisse, como fazer para não se ferir novamente.
Num belo dia de início de outono, quando os ventos são melhores para soltar pipas, ela foi levada às alturas pelo menino. Ela estava temerosa e tímida frente ao vento e ficou apenas pairando sem coragem de fazer as acrobacias que costumava fazer. Ali solitária viu se aproximar uma pipa já velha e muito usada, com muitos remendos. Começaram a conversar e fizeram logo amizade. A pipa mais velha passou a narrar suas aventuras e contou que algumas vezes tinha subido tão alto que voltara úmida das gotas d’água das nuvens. A jovem ficou excitada e perguntou como isto era possível se ela estava presa à linha. A experiente pipa foi logo explicando: Quando aquele que me fez quer que eu voe alto ele escolhe um dia de vento forte, mas nestes dias há muito perigo que eu me perca ou me machuque, então ele escolhe uma linha mais forte para me prender. Também acontece nestes dias que eu passe a dar voltas rapidamente e se num momento estou subindo logo no outro estou descendo e assim fico sem direção e sem controle, então ele me coloca uma grande rabiola. Aprendi que o vento é inconstante e sem propósito e, por isso, é perigoso, passei a confiar no menino que conhece tudo sobre ventos e sabe o que quer para mim. Mas, o mais importante, sabe que meu maior desejo é cumprir o meu destino de voar alto e longe, ver o mundo lá de cima, e faz de tudo para que eu o cumpra. Portanto, se quisermos voar alto e longe precisamos que a linha seja mais forte e não mais fraca, precisamos ainda de uma rabiola maior para manter o controle nos fortes ventos das alturas. A linha forte imporá regras e limites que nos servem de âncora e suporte e a rabiola servirá para disciplinar o nosso vôo. Todas nós precisamos para voar de regras e disciplina. A jovem pipa finalmente aprendera a voar.
José Renato Delben
2006

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Lar doce lar

Havia muito tempo que morava naquela casa. Não se lembrava mais de quando chegara nela, mas até onde a memória o permitia lembrava-se de ter sempre morado ali. No princípio vivia correndo pela casa à procura das janelas e portas para ficar olhando para fora a observar o mundo que a rodeava. Não achava estranho o fato de nunca ter sido permitido a ele sair para o mundo lá fora, pois sempre vivera na casa de acordo com as regras dela e achava que todas as pessoas viviam do mesmo jeito. As pessoas que via nas outras casas vizinhas através das janelas de suas próprias casas eram muito reais, mas as que passeavam pela rua eram meio esquisitas, meio transparentes, meio sem vida. Eram fantasmas ou imagens virtuais, mas não eram reais, então achava que ninguém no mundo saia de suas casas, mas apenas os fantasmas delas. Havia tentado sair algumas vezes, mas se pusesse a cabeça para fora de uma janela que desse para o jardim imediatamente se via olhando para dentro de uma outra sala ou quarto e se desse um passo pela porta na direção da varanda acabava se encontrando num outro lugar da casa. Era natural deste jeito, o mundo era assim e aceitava. Vez ou outra deixava entrar um dos espectros que transitavam lá fora para conversar e brincar, mas era tão estranho conversar com um fantasma. Queria conversar com as pessoas que via através das janelas das casas vizinhas, mas elas não conseguiam sair de suas casas também.
Olhar o tempo todo pelas janelas acabou ficando meio tedioso com o passar do tempo e ele começou a prestar mais atenção às coisas da própria casa. Descobriu nisto uma aventura extraordinária. A casa era enorme! Com muitos quartos diferentes, salas de estar e de jogos, banheiros e cozinhas. Mas não tão grande que não pudesse ser percorrida num único dia, ainda mais ele sendo tão jovem e ligeiro. Mas como uma aventura extraordinária podia durar apenas um dia? Não podia! Sempre havia tantos armários para serem abertos, tantas gavetas, tantos esconderijos e detalhes que se explorasse cuidadosamente, como passou a fazer depois de certo tempo, um dia não bastava. E tantas coisas bonitas, tantas coisas horrendas, estranhas e variadas podiam ser encontradas! Ainda mais que a casa estava sempre mudando, algumas vezes rapidamente e outras lentamente. A cada despertar encontrava uma casa ligeiramente diferente: ou cores, ou decoração, ou móveis diferentes. Até mesmo em algumas épocas cômodos surgiam ou desapareciam. Alguns anos se passaram nesta brincadeira alternada com as visitas às janelas e portas.
Tantas mudanças ocorreram na duração do tempo que começaram a ocorrer padrões que não eram senão variações ligeiras de algo que já acontecera. Não havia mais surpresas e a aventura deixou de existir, o tédio então começou a invadir os cômodos da casa. E com o tédio um sentimento de inutilidade e falta de propósito e, em seguida, a depressão. Passou a fazer suas explorações diárias como se fosse um autômato ou zumbi e por vezes nem da cama saía. Foi então que neste silêncio de desejos, de motivação de entusiasmo que começou a ouvir aquele barulhinho baixinho quase no limite da audição. Não dava para distinguir a natureza, o jeito, o ritmo da coisa. Era algo que a princípio o incomodava. Procurava então constantemente pela casa a origem daquilo para fazer cessar. Colocava os ouvidos em todas as paredes, portas e móveis, mas nunca achava. Talvez por procurar incessantemente, por vontade sua ou da casa, os sons começaram a ficar mais fortes e audíveis e passou a distingui-los. Ás vezes eram gritos de raiva, medo ou alegria, outras vezes trechos de conversas desconexas, canções cantadas ou assobiadas. Mas nunca achava a origem dos sons. De qualquer forma ainda era um zumbido fraco que raramente se manifestava como som inteligível. A partir de então passou a estar sempre alerta em busca de mais aqueles “fantasmas” da casa, sempre à espera de descobrir algum segredo. Mas estar atento à própria casa tem seu preço.
Um belo dia em sua peregrinação no seu próprio lar viu uma sombra, um vulto, um movimento. Quando dirigiu o olhar nada havia lá. Ilusão de óptica pensou. Estou ficando impressionado com a imensa riqueza de sensações que meu lar me proporciona. Mas parecia que a casa respirava sensações, e ilusões. Passou a seguir vultos para perdê-los na virada de um corredor. Não conseguia ter uma visão clara, sempre na periferia da visão. Quando se voltava sumia. Certa vez quando entrou em uma biblioteca viu um senhor sentado na escrivaninha de costas para ele e escrevendo algo e quando foi indagar quem era ele sumiu. Tinha sido a visão mais clara até então e ele quase entrou em estado de choque. A partir deste dia as aparições forem ficando mais freqüentes e mais claras e passou a segui-las até sumirem. Nunca consegui a ver seus rostos, pois apareciam sempre de costas e se afastando.
Segui-las virou uma obsessão e do acordar ao adormecer as seguia procurando identificá-las. Umas pareciam velhas, outras muito jovens, umas pareciam muito felizes e outras infelizes, algumas bravas outras pacíficas. Uma infinidade de estados mentais e aparências podiam ser percebidas pelo andar e pelas conversas, gritos, assobios, canções que apresentavam. A casa passou então a ficar cheia. Apareciam duas, três ou mais ao mesmo tempo e ele ficava indeciso a respeito de qual seguir. Apareciam isoladamente e apresentando estados diferentes deixando a casa numa confusão e balburdia. Começou a andar pela casa sem rumo porque não precisava mais segui-las, elas apareciam por todo canto. Mas nunca um rosto, nem sequer um canto dele. E ele começou a ficar irritado gritando para que elas parassem, mas não era ouvido. Um dia já desanimado ia seguindo absorto em seus pensamentos por um corredor que virava à direita logo à frente e, sem aviso, surge uma aparição na sua direção vindo do outro lado da curva do corredor. Ele encarou-a e de medo e espanto quase perde os sentidos tendo que se apoiar na parede se deixando escorregar até ficar sentado no chão. Era ele que vinha em sua direção, um outro ele para falar a verdade. Ele com uma aparência diferente, um pouco mais velho, com roupas mais sóbrias e murmurando filosofias para si mesmo. Definitivamente era outro ele. Correu para o seu quarto e se escondeu por dias, pois estava preparado para um monte de coisas, mas não para aquilo. Passou a ter medo de encontrar de frente as outras aparições e encará-las. Por fim tomou coragem porque afinal a casa era sua e não a cederia para aparições quaisquer, saiu para os corredores e salas.
No começo foi sempre um enorme choque encontrar outros ele tão diversos dele em postura física e personalidade, mas foi se acostumando. Encontrou um ele bronco e mal educado sempre brigando, outro ele muito alegre e burro, outro ainda até meio efeminado e muitos outros de todos os jeitos. Havia uma infinidade dele em variedade. Mas nenhum dava a mínima para ele, o real, o dono da casa. E ele resolveu que tinha que por ordem para poder ter um pouco da privacidade, ao menos, que perdera nos últimos tempos. Se quisessem aparecer que fosse com hora marcada e preferencialmente por convite dele mesmo. Mas nenhum deles o ouvia. Ele tentava conversar, tentava segurar, tentava barrar o caminho, tentava de tudo, mas passavam por ele como se não existisse. Esperou então por uma das mudanças da casa para um estado que permitisse a comunicação com as aparições. E um dia aconteceu. Encontrou um ele rapaz alegre e contente em uma roupa esportiva andando como se fosse o dono do mundo que subitamente o viu deu um grito de susto e saiu correndo. Fui visto ao menos, pensou. Por muitos dias este ficou sumido, mas outros passaram a vê-lo e em maior ou menor grau tinham a mesma reação. Certa vez viu duas aparições indo uma ao encontro da outra e quando se viram ambas saíram correndo cada um para o seu lado. Então elas podiam se ver também? Que loucura! Logo o susto coletivo começou a passar e elas passaram a se cumprimentar e a ele também, mas faltava coragem a todos eles para começarem uma conversa. Coisa que devagarzinho começou a acontecer. Ele mesmo começou a gostar muito de conversar consigo mesmo, nas suas diversas versões. Com alguns dele a conversa era muito fácil e prazerosa, outros eram muito chatos e nem mesmo ele agüentava ele mesmo nestas ocasiões. Uma vez uns seis dele se encontraram na biblioteca e começaram a discutir algo muito importante, política ou religião, acho. E a discussão esquentou e uns se aliaram contra outros e a discussão acabou virando questão de honra. Nesta hora começaram a acontecer coisas estranhas. Aliados ferrenhos de uma facção iam se aproximando, se encostando e acabavam se fundindo em um só e acabada a discussão se separavam de novo. Eles não percebiam o que tinham feito e a maioria dos presentes também não.
Com o passar do tempo ele foi conhecendo cada um dos outros ele e se tronando íntimo de inúmeros. Um em particular lhe era agradável o convívio. Ele era alegre e espirituoso e nunca perdia a ocasião de fazer uma piada, mas era bom companheiro mesmo quando exagerava. Tinha conversa fácil e por isto vivia conversando com ele e se tornaram companheiros inseparáveis. Acostumou-se com o estado das coisas e até sentia prazer nisto uma vez que nunca mais estivera só. E tudo corria bem. Estava grato pela companhia de todas aquelas aparições, mesmo que não fossem reais de verdade, mas imagens de si mesmo. De tal forma aceitou que havia há muito decidido não expulsar aqueles intrusos. Mas, certa noite resolveram fazer uma confraternização no salão de festas que havia surgido no centro da casa, além de inúmeros quartos que abrigavam muitos dos dele que faziam da casa residência semi-permanente. A festa estava sendo um sucesso e havia inúmeros grupos que se associavam e dissociavam constantemente e, portanto, sempre havia determinados grupos que agradavam a cada um deles. Em determinado momento em que todos já tinham comido demais e bebido mais ainda este seu amigo mais chegado pediu atenção a todos para propor um brinde que foi assim:

˗ “Desde que me lembro morei nesta minha casa e fui solitário até que cada um de vocês foi aparecendo. Sou mais grato ainda pelo aparecimento do meu melhor amigo, mesmo tendo sido um dos últimos a surgir na minha casa. Um viva a todos vocês.”

Ele quase morreu de susto com esta declaração, isto não podia ser. Notou o espanto geral nos seus diversos dele e percebeu que todos pensavam ser os ocupantes originais da casa e os demais os espectros visitantes, inclusive ele sendo um destes para eles. Ficou suspenso entre sentimentos de espanto, incredulidade, horror e medo. Se todos eram originais então todos eram fantasmas igualmente. Seria algum deles real e inteiro? Aquela casa em que vivia era real? Alguma coisa qualquer era real? Enquanto seu mundo conceitual ruía sentiu o pavor de ir se desvanecendo e sendo absorvido junto com todos, uns aos outros, e soube que estava morrendo.
José Renato J. Delben
07/01/2009

domingo, 15 de fevereiro de 2009

O ESPELHO


Na idade áurea de minha vida, na qual minha atenção era constantemente voltada para as belas partes das mulheres que passavam por mim, não tinha muito que fazer depois da escola, a não ser observar os passantes. As brincadeiras da infância já não me tomavam o tempo. Sonhava com as brincadeiras dos adultos, mas estas ainda estavam fora do meu alcance. Gostava então de observar os comportamentos cheios de particularidades próprios de cada conhecido ou desconhecido que passava pela rua de minha casa. Este hábito se generalizou para qualquer lugar que ia.
Poucas pessoas que observei com mais freqüência ficaram na minha memória, mas uma permaneceu fortemente. Havia um senhor jovem ainda que me chamava a atenção pelo seu comportamento estranho. Em todo o lugar que passava e que havia uma superfície minimamente refletora ele diminuía o passo, olhava para seu reflexo e passava a mão no cabelo. Não importa quantas superfícies refletoras encontrasse mesmo em um trecho curto da rua, ele repetia o processo em todas. Achava tão estranho porque basta um espelho de vez em quando para se ajeitar. Só mais tarde conheci o que significavam comportamentos compulsivos.
Como morei na mesma casa em que cresci por mais umas duas décadas sempre o via na medida em que envelhecíamos. Depois de certo tempo ele piorou. Começou a voltar para se observar de novo mais e mais vezes em cada espelho e imaginei que transtorno isto não causava na sua vida pessoal e profissional. Como lhe sobraria tempo para viver se estava tão obcecado por sua imagem? Acabei ficando tão curioso que planejei perguntar diretamente a ele algum dia. Passei a cumprimentá-lo:
“– Bom dia!
– Boa Tarde!”
Passado algum tempo quando ele me retornou um sorriso, passei a perguntar pequenas amenidades sociais:
– Tempo bom, não!?
– Será que chove hoje?
Levou algum tempo para começarmos a ter pequenas conversa, já que era muito tímido. No entanto, o que queria conversar com ele exigia a intimidade de grandes amigos e tinha que esperar até que a amizade se desenvolvesse.
Nestes anos de espera ele continuou piorando e começou a tocar os espelhos e apertá-los. Para que?! Que esperava obter pressionando-os? E ele não teve sorte. Certo dia começaram a reforma de uma lojinha para a instalação de uma loja moderna, daqueles com grandes superfícies de vidro e muitos espelhos que refletiam a pessoa inteira. Nunca o vi tão feliz como quando a loja foi inaugurada. Mas os proprietários e funcionários não. Ele manchava com os dedos a superfície brilhante da vitrine várias vezes ao dia e um funcionário tinha sair para limpar tudo. Mas, cidade pequena, gente generosa, nunca o incomodaram. Até que um dia começou a se esfregar de corpo inteiro na superfície semi-espelhada. Ai não teve jeito, brigaram com ele constantemente até que parasse com aquilo. Mas ele passou a sair todas as noites para realizar a sua compulsão. Trocou o dia pela noite.
Nesta época nós já éramos amigos e um dia tomei coragem e conversei com ele a respeito. Perguntei como tinha começado aquilo e se foi a vaidade que o motivara de início. Disse-me que não. Sempre o intrigara até onde podia se lembrar o desaparecimento da sua imagem quando se afastava do espelho. Na infância, numa época que não possuía ainda capacidade de abstração desenvolvida, revoltara-se contra isto e começou a imaginar que a imagem deveria permanecer mesmo que ele se fosse para longe do espelho. Já adulto soube que isto era um absurdo, mas passou a não controlar os impulsos da infância e verificava constantemente se a imagem se iria com ele, No começo disfarçava penteando o cabelo ou ajeitando uma peça de roupa, mas depois não. Começou a tentar “pregar” a imagem com os dedos no espelho e os fracassos tinham o resultado inverso do que se podia esperar da verificação experimental, ele passou a tentar mais e mais fortemente até que passou a pressionar e esfregar o corpo inteiro no espelho. Ia começar a explicar a impossibilidade do que desejava usando as leis da óptica física e geométrica e que a única maneira da imagem permanecer, ou continuar sendo vista por ele, era se afastar sempre de frente para o espelho e mesmo assim iria ficando cada vez menor à medida que se afastava até se tornar um ponto infinitesimal frente à magnitude do universo, mas desisti. De que adiantaria a lógica do conhecimento se ele já o possuía. O comportamento era patológico e havia um sério desequilíbrio mental ao achar possível aquilo.
Não muito tempo depois sai da casa dos meus pais e fui morar em outro bairro ficando alguns anos sem vê-lo. Um dia, voltando para casa em visita, fui procurá-lo e seus filhos me informaram que falecera repentinamente de um ataque cardíaco quando vândalos atiraram um tijolo na vitrina da loja. Fiquei chocado com a gravidade que tinha alcançado a sua obsessão: morrer pela perda de um objeto de adoração. Penso constantemente nele e na sua obsessão desde então. De uns tempos para cá estou começando a ficar preocupado comigo mesmo. Outro dia passei a tocar em alguns espelhos que encontro no caminho.
José Renato J. Delben
janeiro/2009

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

SARÇA

אֶהְיֶה
Espinhos, aridez.
Solidão que é.
É o que é.
Eterno ardor

אהיה אשר אהיה
Casa agreste
Acácia divina
Fria no fogo
Arde no mundo

אל
Acima, acima
Por todos os lados
Profundezas
plenitude

José Renato 12/02/2009

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

LOBO MAU


Herbert fora o sétimo filhote macho a sair da barriga de sua mãe, Canis. Seu pai, Lúpus, ficou muito feliz, se bem que uma pequena preocupação o incomodava. Ele não era muito estudado e acreditava em muitas superstições. Diziam nas reuniões com os amigos, quando paravam para uivar para a lua nas noites de lua cheia, que o sétimo filho macho a nascer podia virar homislobo. Como isto era besteira resolveu esquecer a bobagem e agradecer à Natureza a bela ninhada da qual era pai.
Herbert cresceu sempre alegre e brincalhão como só o são os filhotes de lobo. Se bem que sempre fora bastante egoísta, queria tudo para si e na mesma hora. Já quando pequeno brigava para mamar em mais de uma teta da sua mãe tentando impedir que algum dos irmãos também recebesse aquela dádiva bondosa. À medida que crescia passou a buscar satisfação exagerada em tudo que fazia: queria ir mais longe quando a mãe pedia que andasse por perto, queria comer mais que a sua porção da caça trazida pelos pais quando sabia que tinha que dividir com os irmãos e gostava de brincadeiras mais brutas quando os pais haviam imposto limites. E assim o tempo foi passando. E Herbert foi ficando cada vez mais diferente de seus irmãos.
Quando chegou à adolescência ele parou de andar com o bando nas noites de lua cheia para uivar e celebrar a beleza da noite e reafirmar a unidade do bando. Ninguém sabia para onde ia, ficava dias fora e, após voltar, passava alguns dias esquisitão. Por esta época os outros lobos passaram a chamá-lo de lobo mau. Ele havia posto a alcatéia de lado e, lentamente a alcatéia o colocou de lado também: não havia o que fazer para re-inseri-lo na comunidade dos lobos bons.
Herbert nem mais saia para caçar os deliciosos cervos, porcos e outros bichinhos da vizinhança. Quando a alcatéia saía para caçar paravam a caçada assim que obtinham o suficiente para saciar a fome de todos. Ninguém sentia prazer em caçar, a não ser pela velocidade e pelo vento, mas satisfação e gratidão pela generosidade da natureza. Já Herbert parecia sentir prazer em abater o maior número de animais, como se fosse uma competição. Começou então a ser comentado, principalmente pelas lobas mais velhas, que ele era um homislobo que se transformava no período de lua cheia. Lupicínio, um jovem lobinho muito curioso ouviu uma destas conversas quando duas fêmeas conversavam sem perceber que ele estava por perto. Este não era um assunto a ser tratado com os mais jovens.
Lupicínio então passou a observar Herbert mais de perto procurando perceber o que é que o tornava um Homislobo. A não ser as esquisitices que todos já conheciam ele não viu nada demais, até que chegou a lua cheia. Herbert desapareceu e só voltou na lua minguante. Voltou mais gordo e com papadas debaixo dos olhos. Lupicínio ficou ainda mais curioso e se determinou a não perder Herbert de vista na próxima lua cheia, mas para sua frustração, isto acabou por acontecer de novo muitas vezes. Mas a cada vez aprendia um pouco mais sobre os hábitos de Herbert e, como acontece com todos os lobos, crescia e aprendia os métodos de caça rapidamente: ficou hábil nos métodos de espreita e perseguição. Numa noite de início do período de lua cheia pode seguir Herbert.
Lupicínio viu Herbert se afastar sorrateiramente da alcatéia logo que a noite caiu. Muito cauteloso Herbert parou várias vezes para verificar se não o seguiam, mas Lupicínio estava mais cauteloso ainda e conseguiu seguí-lo até uma clareira na qual chegaram momentos antes da lua cheia despontar no horizonte. Naquele lugar Lupicínio viu algo que pensou ser a coisa mais horripilante que podia existir, o que logo perceberia estar errado. Herbert entre espasmos de dor e prazer se transformou na criatura mais cruel e insensível com a natureza e com as criaturas: num homem. Lupicínio sentiu enorme pena de Herbert, e um quê de revolta. Não poderia haver destino mais cruel para um lobo. Herbert seguiu por uma trilha aberta pelos homens de uma aldeia próxima até chegar a uma suja toca de homens um pouco distante do lugar em que os homens viviam. Lá ele se cobriu com o que Lupicínio pensava ser a pele dos homens e seguiu para o lugar dos homens.
Nos dias que se seguiram Lupicínio pode entender o horror com o qual os mais velhos falavam dos homislobos. Viu Herbert participar de reuniões ruidosas, briguentas, nas quais se comia além do necessário e bebia-se um líquido que o tornava insano e cruel. Seguiram-se dias de matanças que era o modo de caçar dos homens. O horror máximo de Lupicínio foi presenciar Herbert participar de uma caçada aos próprios irmãos lobos. Percebeu que os homens, diferente dos lobos, não respeitavam a natureza nem a si mesmos e que as suas maneiras ruidosas, inquietas e muitas vezes cruéis eram formas de mascararem a dor de serem homens. Lupicínio, deste dia em diante, ficou mais triste, embora satisfeito e em paz por ser um lobo e não um animal tão selvagem como um homem.
José Renato Delben

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

ESCONSO

Pensamentos pipocas,
Espocam acaso,
Razão fiandeira,
Esteira de idéias,
Artifício, mentira.

Emoções irrompem
Gatilhos ignotos
Leis? Reis? Não!
Desordem será?
Esconderijos

Verdades...perigos,
Ausências eternas,
Cofres lacrados,
Armas cruéis.
Espreita.
José Renato 09/02/2009

MERDA

Da morte pútrida das coisas em mim nascem belíssimas flores.
Das belíssimas flores em mim nascem mortes putrefatas.
Tudo é morte e odores fétidos de fertilidade.
Tudo é nascimento e suaves olores de findar.
Morte, nascimento, morte, nascimento...
Tudo é tudo e nada é qualquer coisa.
José Renato 09/02/2009